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Avatar de Michele Contel

Caramba, Christian. Que texto. To com um choro na garganta porque me vi muito em suas palavras. É inacreditável como mesmo tendo vivido em lugares diferentes dos seus, a experiência da escassez tenha sido a mesma - o desajuste, a tristeza, a sensação de nunca ser bom o bastante para alguém. Meu abraço e, principalmente, meu agradecimento: foi uma honra ter lido suas palavras tão honestas.

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Avatar de joão mancha

Altos texto. Me vi demais nisso. Cresci em Balneário Camboriú e lá ser pobre entra em uma espécie de sistema de castas - quem é rico está no topo dos prédios ou dentro de Ferraris não passam pelos bairros onde eu vivi e meus pais vivem até hoje. A gente naturaliza porque não vê a desigualdade acontecendo no ato, não tem contato com os ricos - existem eles e existem nós. A primeira vez que entrei em um prédio na Avenida Atlântica, na orla de BC, para receber 200 reais de um freela, foi como se a realidade se fragmentasse. Era outro mundo dentro da cidade que eu cresci. Em Balenário a riqueza é um programa ruim de tv aberta - eu assistia os ricos passando pela rua da mesma maneira que uma vez vi o Dedé gravando um episódio de Comando Maluco na praia: eles lá vivem num mundo de ficção fazendo vruum em um Camaro e eu aqui assisto com um pouco de curiosidade mas sem muita entrega emocional.

Além disso, minha família é de uma cidade de 2000 habitantes no interior do estado, onde nasci. Meus tios viviam em casas cedidas no terreno de uma madeireira na qual todos trabalhavam. As mulheres, quase todas, eram empregadas domésticas, cozinheiras ou operárias. Vivendo em BC com um pai soldado da PM, apesar de pobre, eu acabava sendo o playboy da família. Enquanto eu ia no shopping com colegas de sala e ficava assistindo eles comendo mcdonalds enquanto mentia que não tava com fome, na minha cidade natal não existia nem rua asfaltada (na época). Nessa época eu tinha vergonha de ser rico.

Minha vergonha de ser pobre só virou uma luz que me guia quando me mudei pra Floripa, com 17 anos. Foi quando entrei na UFSC. Diferente de BC, Floripa é uma cidade de old money. Os ricos não fazem tanto show. Eu comecei a conviver com eles dentro da universidade. Gente que vivia em mansão, estudou em escola de elite, se hospedava em hotel e luxo enquanto procurava por um apartamento para alugar. Ou até gente classe média alta, que pra mim também eram ricos, que tinham viajado com a família pra Europa ou pra Bahia, moravam e casa própria, usavam roupas descoladas, tinham tv a cabo. Enquanto isso eu corria para buscar estágio (que é vedado no primeiro semestre), bolsa permanência, auxílio moradia - ainda era o primeiro mandato da Dilma e esse tipo de coisa ainda existia com uma certa amplitude. Compartilhava com alguns colegas de sala o fato de não pegar ônibus - eles iam de carro porque busão é muito desconfortável, eu ia de bike porque busão é muito caro.

A vergonha veio primeiro não pela falta de dinheiro, já que pular refeição e mentir não estar com fome já era natural pra mim. Eu romantizava, de certa forma, comer só polenta com farofa yoki em todas as refeições pra economizar uma grana, porque achava que teria uma história mais massa pra contar quando virasse gente. Tinha lido Na natureza selvagem e on the road e me achava O beatnik tupiniquim. A vergonha veio pela minha falta de cultura, que os colegas endinheirados pareciam ter de sobra. Falavam inglês sem sotaque e, às vezes, francês. Sabiam de tudo do mundo dos USA, das últimas do Jay-Z e do Kanye. Cresceram ouvindo Caetano e Chico, Gal e Gil enquanto eu só no Bruno e Marrone, no Rick e Renner e tendo o Nirvana e a cultura do quadrinho underground, que já eram vistos como coisa de velho, como vetores mudança total da vida na adolescência (acho Caetano, Chico, Gal e Gil fodas, mas lembro do dia em que eles foram novidade pra mim). Enquanto em BC os ricos se orgulham de serem idiotas com tino pros negócios, em Floripa o buraco é mais embaixo. Existe um filo onde todos são bilíngues, bem educados, muitos bem receptivos com os menos privilegiados. São pessoas legais, de verdade. E aí a vergonha cresce junto com a inveja e a vergonha de sentir inveja. Pela primeira vez eu quis ser como eles. Ter cultura, ter assunto pra falar. Não era ser o Eike Batista ou o Luciano Hang, era ser o Walter Salles, o Jô Soares.

Passei a virar madrugada lendo, vendo filmes de rich people problems e tentando empatizar com os personagens para entender a língua dos meus colegas enquanto abria as portas da percepção com a psicodelia da falta de comida, da privação de sono e da depressão galopante. Tudo isso em segredo - tinha vergonha de ser pobre diante dos meus colegas ricos no mesmo tanto que tinha vergonha de contar pra minha família e amigos que estava me estourando só pra agradar uma galera aleatória.

Foram os piores anos da minha vida. A vergonha se transformou em uma necessidade de estudar 5x mais do que qualquer outro para que eu não continuasse sendo um bárbaro caipira. Tudo evoluiu pra uma depressão de anos, que cagou com as minhas notas no segundo ano de curso, me deixando sem bolsa. Abandonei o curso e fui trabalhar na maior empresa de telemarketing daqui, que na época era do Topázio Neto, nosso prefeito influencer. O tempo que trabalhei no telemarketing e no shopping foram uma recuperação de vida - ainda não tinha grana nenhuma, fui de um apê de 3 quartos dividido com 6 amigos pra uma kitnet de 10m² no topo do morro do Pantanal, ainda comia só almoço e janta, ainda perdia sono com o fato de que 80% do meu salário ia só pra aluguel, mas convivia com gente mais parecida comigo e infinitamente mais interessante.

Depois voltei pra universidade, em outro curso, com a vantagem da ampliação do sistema de cotas - o que fez com que tivessem mais pessoas identificáveis, com problemas de gente real. Mesmo assim, quando encontro por acaso algum ex-colega do primeiro curso, o que abandonei, contando feliz e contente que foi pra festivais de música, viajou pra Espanha ou trabalha em uma startup italiana e anda recebendo em euro e pergunta se eu me formei, respondo que deixei o curso porque não estava gostando do currículo, porque não me encontrei na área, porque acabei gostando mais de letras ou conto alguma mentira deslavada porque, também, foda-se. Nunca digo que foi por falta de grana.

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