ASMR é pornô de quem perdeu a esperança
sobre a solidão, falta de dinheiro, influenciadores, soluções milagrosas e depilar os cocos na internet.
Imagine estas palavras sussurradas devagar no seu ouvido. Assim começaria uma sessão de ASMR.
E o que é ASMR? Basicamente, é uma sensação provocada por algum estímulo, geralmente sonoro, com ação independente no corpo e que atinge um clímax. Ao pé da letra, é uma resposta sensorial meridiana autônoma.
Mas o que esse palavreado difícil quer dizer mesmo é o seguinte: o cérebro experimenta um estado de gozo e relaxamento.
A vida é uma casa em que não consigo entrar. Desde criança, sinto-me observar a existência da janela. Então, botei na cabeça que, se eu fosse bom, agradável ou engraçado o bastante, em algum momento poderia participar da festa. Só que esse convite nunca chegou.
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Caí no buraco da ASMR no YouTube mais rápido que Alice no País das Maravilhas.
Recém havia me mudado para a nova casa, perseguido pelos terrores de aluguel que escrevi aqui noutra ocasião, e tinha ido de Americanas com os gastos da mudança. Meu corpo todo pedia uma massagem e meu saldo bancário respondia: vai sonhando. A saída foi pesquisar na internet como me massagear sozinho.
Não demorou para o algoritmo recomendar o primeiro vídeo de ASMR. E outro. E outro.
Vergonhosamente, devorei tudo que vi pela frente, como quem ataca um buffet livre, servindo-se de três tipos diferentes de arroz e cinco de batata no mesmo prato. Mas isso me tornou um especialista no assunto. Em ASMR, não em buffet livre.
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Já notou que muitos filmes de possessão têm uma regra secreta? A entidade só pode entrar no corpo de alguém se a defesa psicológica dessa pessoa estiver abalada. Por isso, primeiro se assombra, depois se possui.
Agora pense comigo: não vivemos em um processo contínuo de esvaziamento do ser humano?
A vida moderna é cheia de assombrações. Passamos a maior parte do nosso tempo acordados para gerar valor ao patrão, entre tarefas insignificantes e o trânsito, enquanto o custo da sobrevivência consome cada vez mais o salário. Por falta de tempo, de dinheiro ou de estrutura, a vida social é mais restrita. Não por acaso, há uma pandemia de solidão, segundo a Organização Mundial da Saúde. Viramos receptáculos vazios.
Enquanto isso, sobram as telas, que são nosso trabalho e nosso lazer, nossa educação e nosso entretenimento. Por meio delas, então nos vendem de volta uma vida. Este novo produto vai curar todos os seus problemas. Você vai ser feliz com este corpo. Esta religião tem todas as respostas.
É compreensível que as pessoas comprem tais soluções. Não conseguiremos nos conectar enquanto sociedade sem encarar o fato de que tentamos recuperar algo que nos foi tirado ou nunca sentimos. Somos obrigados a nos projetar para suprir a falta e não superaremos essa fase antes de termos certeza de nossas próprias vidas.
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Eu tinha plena consciência da minha situação quando viciei nos vídeos de ASMR. Estava sem grana e sozinho, mas não aquela solitude de comer a sós no restaurante e alguém tirar uma foto com a legenda “liberdade ou solidão?”. Sequer podia sair de casa para não correr o risco de gastar R$ 100 apenas colocando o pé na rua.
Foi assim que descobri a diversidade da ASMR, com mais gêneros que o cinema. Alguns deles, por sinal, evidenciam o problema da projeção.
ASMR não intencional
Qualquer pessoa falando de um jeito monótono é ASMR em potencial. A fala tem um efeito calmante e daí para o sono é um piscar de olhos, similar à experiência pós-orgasmo. Isso vale para um velhinho japonês mostrando canetas-tinteiro ou a Björk comentando o televisor dela.
ASMR natural
Ou ASMR raiz. Existem vídeos e mais vídeos dedicados a sons de pássaros, do vento nas folhas, da chuva, das ondas no mar, coisas que dá para ouvir saindo um pouco mais de casa, se tiver a sorte de não encontrar alguém com uma JBL por perto.
ASMR artificial
Esta versão é produzida em laboratório ou, melhor, no quarto de algum adolescente. São garotas de unhas compridas tamborilando objetos aleatórios, gente estranha alisando microfones peludos e caras depilando cocos — literalmente, ainda bem!
ASMR de leitura
Poderia ser interessante, mas é um gênero mal explorado. A galera fica soprando no microfone e não dá para entender uma palavra do livro. Em vez de me acalmar, passo raiva.
ASMR teatral
Nada melhor para combater a ansiedade moderna que se imaginar sendo um viking ferido ou uma ajudante de cozinheira no século 17. Os vídeos marcam a transição do estímulo estritamente sonoro para o campo audiovisual.
ASMR médica
Os vídeos de exames detalhados parecem ASMR não intencional, até o espectador se dar conta de que ir ao médico não é uma lembrança agradável. No entanto, aí entra a projeção de algo mais íntimo. Começa-se a imaginar como é receber esse tipo de avaliação cuidadosa, uma fantasia de atenção, ouvindo a cada momento que está tudo bem. Eis o retrato de uma sociedade doente e desalentada: ver alguém receber cuidados médicos básicos é considerado um conforto antes de dormir.
ASMR de cuidados pessoais
Os ricos vão às compras, ao salão de beleza ou ao spa quando estão tristes. Já os pobres vão à internet ver outras pessoas serem cuidadas. E os espectadores ainda comentam o trabalho como se eles mesmos tivessem passado pela experiência.
ASMR espiritual
Você também pode tomar um passe ou fazer uma limpa energética pelo celular enquanto come no sofá um pacote de Torcida sabor cebola. Isso não é maravilhoso?
ASMR de massagem
Há um bocado de fetichização tanto de culturas orientais quanto das mulheres massagistas, não raro os dois juntos, beirando o soft porn. Mas o maior problema é a projeção do público, que chega a níveis assustadores. “A massagem na perna foi ótima”, “ver você faz eu me sentir bem” e “queria ser você” são alguns dos comentários nos vídeos.
Pode reparar, todo dia tem uma notícia de um influenciador preso ou envolvido em escândalo. Você não conhece o sujeito, mas milhões de pessoas o acompanham.
Por que, você se pergunta, por que ele atrai tantos seguidores, enquanto eu luto para produzir bons conteúdos e não saio do lugar?
A razão não está no conteúdo. Esses influenciadores oferecem mais que produtos, serviços ou conhecimento. Eles vendem uma vida, uma projeção, a ideia de uma pessoa rica, magra, sarada, viajante, desejada ou o que for. Quer crescer como eles? Venda um “eu”.
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Esse não é um mercado novo. Antes das redes sociais e do YouTube, as pessoas têm se projetado no que veem na televisão, nas revistas e nos livros — Emma Bovary que o diga.
Outro dia me peguei obcecado pela série Ruptura. Pouco me importam os mistérios da Lumon, até porque estou acostumado a um trabalho invisível. O que me interessa na história é a convivência dos amigos, o despontar natural de um amor, os flertes descontraídos, essa casa em que não consigo entrar.
Em minha boca desmancha lentamente o fruto azedo de não saber viver. Estaria melhor se acreditasse em algum influenciador picareta? Talvez… Ao menos teria a esperança de que, comprando um produto ou curso, algo mudaria.
Quando comecei a ver os vídeos de massagem ASMR, logo percebi os problemas daquilo. E o que fiz a respeito? Continuei consumindo esses conteúdos, porque não era só da massagem que precisava. Eu queria ser cuidado depois de cuidar sozinho de trezentas pendências da mudança e não tinha dinheiro ou coragem para ir atrás de alguém. Isso me adoeceu. Então, a única forma de sentir um pouco do prazer que desejava foi assistindo à experiência alheia.
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Não acho que vou mudar. Não acho que vou aprender. Mas escrevo para inventar a vida que não sei.
A ASMR foi apenas uma de tantas projeções que arrumei para mim ao longo dos anos. Já me projetei até na minha própria história para dar fechamento a um velho amor.
No fundo, fico feliz que alguém no cafundó do Paquistão ganhe uns trocados no YouTube batucando nas costas do seu compadre como se fosse uma técnica ancestral de massagem. E, se nada der certo para o meu lado, ao menos descobri que posso depilar os cocos na internet.
Se tiver curiosidade, os vídeos mencionados estão nos comentários. Aproveite para deixar sua opinião: estamos condenados a terceirizar o melhor da experiência humana?
playlícia
O coco é tema de alguns clássicos da música brasileira, como “Pra Tirar Coco” de Messias Holanda e “Coco Partido” de Alcione. O samba de coco é, também, um ritmo popular do Brasil. Donas Aurinha e Selma do Coco são bons exemplos disso.
Aproveitando a referência, atualizei minha playlist Música Brasileira de Comer. Já são quase 100 faixas e mais de cinco horas de músicas que falam só de comida.
vi por aí
Estou apaixonado pela Dua Lipa falando sobre literatura. Sim, a cantora pop. As entrevistas com Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura, Chimamanda Ngozi Adichie e Patti Smith são muito bem pesquisadas, atentas e provocativas. Ela está, de fato, lendo e ouvindo as autoras. Isso tem tudo a ver com o tema da última Newslenta: o que as pessoas interessantes fazem?
Já esta edição encontra um ótimo complemento em Tá Todo Mundo Tentando: escolher, da
.O que o isolamento social faz com o cérebro? Um alerta da Dra. Tracey Marks sobre os riscos da solidão à saúde (em inglês).
A Mormaço está distribuindo a zine virtual “As Ondas” no site da editora. A organização é de
, com textos de , Yara Fers, da própria Thainá e outras autoras. Clique em “preço sob consulta” para receber sua cópia gratuita.“A beleza da fotografia de rua é capturar uma imagem que eu sequer poderia imaginar”, diz o fotógrafo Tatsuo Suzuki. As fotos dele em Tóquio são cheias dessa imprevisibilidade.
Chegou até aqui? Curtir esta edição e assinar a Newslenta é de graça.
Um abraço do Chris
Não intencional: https://www.youtube.com/watch?v=0D7J5YWWcgs
Natureza: https://www.youtube.com/watch?v=IUfA_J4eES0
Artificial: https://www.youtube.com/watch?v=HHR9_ANemXY
Leitura: https://www.youtube.com/watch?v=PhFuiBLLO-Y
Teatral: https://www.youtube.com/watch?v=OLsOqdbTJbo
Médica: https://www.youtube.com/watch?v=8Y6eo-LHWo8
Cuidados pessoais: https://www.youtube.com/watch?v=oBpElDAP77c
Espiritual: https://www.youtube.com/watch?v=9arVvkhhNMA
Massagem: https://www.youtube.com/watch?v=QbF3kKxfhTw
Texto bacana, e dei risadas. Percebi que um de meus ASMR (nem sabia que era isso) favoritos são ver carpinteiros japoneses criando móveis sem cola ou parafuso, só na arte dos encaixes (sashimono).