terrores de aluguel
levar ghosting já é ruim, mas levar ghosting de um fantasma é pior ainda.
Encontrar um apartamento para alugar foi o menor dos meus terrores, comparado ao que veio em seguida.
O aluguel no meu antigo endereço chegou a um nível insustentável — de novo. Havia uma década que me mudava para cada vez mais longe do Centro, esticando a corda para fazer o teto caber no orçamento. Então, logo que recebi a notícia do reajuste, comecei a procurar outro imóvel. Essa é sempre uma experiência desoladora, não é mesmo? Cativeiros que estrelariam no Cidade Alerta são oferecidos a preço de um cruzeiro para as Bahamas. E tem quem aceite!
Milagrosamente, achei um apartamento próximo do trabalho por um valor que conseguiria pagar. Era um prédio antigo com todas as particularidades do gênero: sem elevador, piso de taco desgastado e muita intimidade com os hábitos sanitários dos outros residentes, que se ouviam pelo vão da janela do banheiro. Também havia uma barra de ferro que atravessava a sala, um pouco abaixo do teto, sem qualquer explicação.
Agora, cá entre nós, isso era irrelevante perto da localização e do aluguel. Em menos de dez minutos sabia que tinha encontrado um novo lar. E assim foi.
II
A mudança ocorreu no sábado seguinte e foi marcada por incidentes. Para começar, um dos carregadores caiu na escada e torceu o pé, me obrigando a carregar as caixas no lugar dele até o terceiro andar para não ter de pagar hora extra. Enquanto eu subia, uma velha vestida de Dona Clotilde parou na minha frente, bloqueando a passagem.
— Você é o novo morador do 304? — ela perguntou.
— Sim.
— Ah, achei que o apartamento nunca seria alugado depois que…
— Pois a senhora me dá licença que isto aqui tá pesado, sabe como é.
Outros vizinhos do andar às vezes abriam as portas para bisbilhotar a mudança e logo se encasulavam de volta. Para ajudar que é bom ninguém se prestava.
Foi um dia cansativo. Coloquei minhas tralhas no lugar, jantei um miojo sabor Tomate Suave e me joguei na cama. Tive sonhos agitados, jurei ouvir barulhos estranhos à noite, senti um calor febril e acordei com todo tipo de dores musculares.
No banho, pela manhã, ainda percebi uns arranhões avermelhados nas costas e nos ombros. É estranho que não tivesse reparado nesses esbarrões durante a mudança. Pelo menos o pior já havia passado, acreditei.
A poeira dos dias acumulou-se no calendário. Mas, a cada manhã, sentia uma dor nova, toda semana algo me tirava a paciência. Objetos sumiam, luzes piscavam e mistérios que tais. Apareceu até uma mancha de mofo na parede da sala que parecia a sombra de uma forca pendurada na barra de ferro.
Isso explicava por que o apartamento estava barato. O lugar era cheio de infiltrações, problemas elétricos e, quem sabe, ladrões.
III
Resolvi deixar o celular filmando durante a madrugada para entender o motivo de acordar sempre tão moído. Aquilo devia ser caso de sonambulismo, apneia do sono ou síndrome de pernas inquietas segundo minhas pesquisas no Google.
Então… Meu queixo caiu vendo o vídeo. Não só me levantava à noite, como acariciava as partes íntimas com os pés plantando bananeira sobre a cama, subia as paredes e engatinhava pelo teto, tudo enquanto fazia caretas horrendas. Sonambulismo? Não, possessão!
Aquilo me arrepiava a alma, sim, mas tinha algo mais. Havia curiosidade — até que ponto eu poderia chegar? A ideia de me ver sendo outro, quase irreconhecível, me seduzia.
Repeti o experimento na noite seguinte, e na próxima, e mais uma, sempre com o mesmo resultado. As filmagens mostravam meu corpo se contorcendo nas poses mais exuberantes assim que entrava em sono profundo. Era quando o outro entrava em mim. A vida então poderia ser deliciosa!
Passei a esperar o anoitecer não mais com receio, e sim com ansiedade. Talvez sentisse inveja do fantasma que me possuía sem pagar aluguel. Invejava mesmo sua liberdade e a queria para mim. Ser possuído significava não precisar ser eu. À noite, estava livre das contas, das amarras do salário e do trabalho, tudo aquilo que me consumia durante o dia.
Trabalhei a vida inteira, e para quê? Para não conseguir um imóvel no meu nome? Para não poder me aposentar? Para viver com o dinheiro contado mês a mês? Veja, minhas coisas nunca foram as verdadeiramente desejadas, foram as minimamente possíveis. Até meus sonhos começaram a nascer podados para caberem na fatura do cartão. Esse negócio me adoeceu aos poucos, me roeu por dentro.
Outra pessoa talvez morresse de medo de conviver com um fantasma. Eu me sentia finalmente vivo e amava isso.
IV
Dizem que amar é como ter borboletas no estômago. Tolice! Amar é sentir a mão alheia despontar dentro do próprio ventre, esticando sua pele para que os dedos dela e os seus possam entrelaçar-se.
Eu não podia mais viver sem meu fantasma nem com essa raiva que fervia em mim a todo momento. Queria passar mais tempo com ele, sendo ele, ser possuído noite e dia. Cheguei a contratar uma médium para que pudéssemos conversar diretamente. Ela veio aqui num domingo à noite, vestida de branco dos pés à cabeça, acendeu umas velas, montou uns apetrechos sobre a mesa e pediu para darmos as mãos. Assim ela canalizaria a energia do espírito através de mim.
— Espírito do além, estás aí? Responde, ó espírito! Manifes…
A voz dela mudou. As janelas tremiam, as portas bateram, um ar gelado subiu pelo apartamento, mas nada daquilo me espantava. Queria meu fantasma.
— Vamos estar sempre juntos? — perguntei. — Prometa que vamos estar juntos, eu preciso de você, me entende? Eu preciso!
Silêncio.
O apartamento estagnou. Passados os minutos, a mulher voltou a falar com a voz normal, um pouco embaraçada:
— Desculpa, acho que ele te deu ghosting…
V
Minha vida depois daquele instante foi cheia de velhos nadas. Voltei a ser apenas eu, sem uma gota de gozo ou esperança.
Trabalhei duro para me distrair da companhia que não teria em casa. Ganhei alguns tapinhas nas costas, mais responsabilidades, e nenhum aumento de salário. Continuava remando e remando sem ver a praia.
Foram meses de marasmo. Só percebi que estava prestes a completar um ano no apartamento quando a imobiliária mandou um e-mail avisando que subiria o aluguel. Esse era o verdadeiro assombro que me perseguiria para sempre.
Novamente fui obrigado a procurar um novo lugar. Mas, quer saber? Estava exausto disso! Depois de provar a liberdade, nada mais teria gosto.
Pensei por muito tempo em como agir. Então, a mancha de mofo na sala me deu uma ideia. Só precisaria fazer o que havia feito nesses anos todos: esticar a corda.
Posso morar no seu corpo?
Acredite se quiser: escrevi esse conto apenas para fazer a piada sobre levar ghosting de um fantasma. Por sinal, você gosta de histórias de terror? Se sim, mais psicológicas ou sobrenaturais?
playlícia
Notei que diversas músicas em português têm títulos com dias da semana. Aí pensei: será que dá para montar uma playlist em sequência, de segunda a domingo, por um mês inteiro? A resposta é sim, com sobras!
Ouça Um mês de música no Spotify.
Obs.: vários clássicos ficaram de fora, como Domingo no parque e a Marcha da quarta-feira de cinzas. Alguns dias da semana são mais populares que outros…
lançamento
Em agosto teve mais um lançamento de Acende uma fogueira para a longa noite. Dessa vez, no Sarau da Tainha — Outros Mares, que aconteceu no dia 17, em Florianópolis (SC).
Quer um exemplar autografado dessa obra “bonita, brutal, ardente”, como definiu a escritora Monique Malcher? Compre comigo!
O livro também segue à venda no site da Editora Patuá e na Amazon.
vi por aí
Ainda em clima de Olimpíadas/Paralimpíadas, a história de Cinisca, a primeira mulher a vencer uma competição olímpica, mesmo sem ter competido.
Entre os Jogos de 1912 e 1948, havia medalhas olímpicas para arquitetura, artes plásticas, música e literatura. Inclusive, um dos medalhistas em 1928 foi Paul Landowski, mais conhecido pela estátua do Cristo Redentor no Rio de Janeiro.
Lya König Zumblick é uma designer que admiro. Ela está à frente da Hilma Galeria, cujo nome é inspirado pela pintora sueca Hilma af Klint (1862-1944), precursora da pintura abstrata. Vale conhecer a história dessa artista que, depois de muito tempo, vem recebendo os merecidos créditos (e visitar a lojinha da Lya).
Mas Hilma não estava sozinha. Como destaca esta matéria da Artforum, ela fazia parte de um coletivo de mulheres chamado “As Cinco”. Os trabalhos delas são uma pira!
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
a criatividade é mesmo um assombro. 😅
e além de tudo eu e minha querida galeria são citadas, muito obrigada pelo apoio sempre, primo <3