quem sou eu?
Dez pensamentos inspirados por vinte dias de viagem entre Belo Horizonte, São João del Rei, Tiradentes, Ouro Preto, Brasília, Fortaleza, São Luís, Barreirinhas e Alcântara.
10.
Viajar é o estado natural do ser humano. Enquanto Homo sapiens, existimos há 200.000–300.000 anos. Apenas nos últimos 10.000 anos, mais ou menos, é que amarramos nosso burrinho e decidimos ficar. Mas ainda hoje milhões de pessoas são nômades pela mesma razão milenar: a busca por comida. Muitos mais viajam para saciar outra fome, a da alma.
9.
Viajo porque assim me sinto mais eu mesmo, é quando preencho o vazio de mim. Nos vinte dias em que viajei no último fevereiro, esse pensamento me assombrou. Como posso me sentir melhor sendo um forasteiro, sendo um outro numa terra distante? Afinal, quem sou eu?
8.
É preciso viajar leve. Não falo da economia com a bagagem despachada, e sim da mala que carregamos na consciência, a danada da expectativa. Esperamos que não chova, que não haja filas, que unicórnios nos levem para ver a Mona Lisa… mas o acaso não está nem aí para nossas fantasias. Viajar nos ensina sobre o que é possível — e há tantas possibilidades quando abrimos os olhos para o mundo além de nós mesmos. Lembrando o que escrevi em Passagem para Lugar Nenhum: “O mundo é todo igual para quem está fechado sobre si”.
7.
Imagino alguém que faça um tour gastronômico por diferentes países. Brasil, França, Itália, Japão, Grécia, Índia… No fim, esse alguém lhe mostra as fotos dos restaurantes onde esteve. Só de pensar nas maravilhas que a pessoa provou, você chega a salivar. Então ela mostra os registros, para seu espanto: todos os lugares onde ela esteve eram McDonald’s. Essa é a minha impressão de quem viaja e só tira fotos de si.
6.
Eu sou um preguiçoso, pelo menos o que fica. Sinto que poderia ser alguém melhor, só estou na vida errada. É como no filme Sindicato de Ladrões, que tem aquela fala: “Eu poderia ter sido um competidor. Poderia ter sido alguém em vez de um vagabundo”. Quando viajo, sou muito mais disposto, mais decidido, mais ligeiro. Em casa, sou uma vergonha para mim mesmo pela falta de disposição para as mínimas coisas.
5.
Carolina Bataier escreve que “das experiências e lugares lindos que visitamos, dos momentos incríveis que vivemos e das nossas realizações grandiosas, fica o afeto” e concordo plenamente com ela. Um beijo ao pé do Obelisco de Buenos Aires, uma xícara de chá no sul do Chile, um bilhete carinhoso recebido em Bogotá, um passeio acompanhado pelas ruas de São Luís, uma confidência, um convite, um brinde, um sonho partilhado, uma ajuda… As memórias que trago mais próximas do peito são as carregadas de afeto — em suas mais variadas formas. Mas, para receber e dar afeto, é preciso estar aberto.
4.
Enquanto viajantes, tendemos a nos ver como protagonistas de nossas aventuras. Antes, deveríamos adotar a postura de narradores. Assim exercitaríamos a percepção tanto quanto as pernas em nossas viagens.
“Conhecera as paisagens da América e as distâncias que as separavam. Vira a feição dos seus povos, os seus pendores, as suas decadências. Contudo, se caísse uma bomba sobre qualquer uma dessas cidades e a apagasse por inteiro, para mim isso seria apenas uma matéria de jornal. E se algo acontecesse a Cáli, isso então me afetaria, pois Cáli agora era María.” — Passagem para Lugar Nenhum
3.
A câmera, além de espelho, pode servir de lupa. Alain de Botton comenta que John Ruskin entendia o desenho como uma forma de nos atentarmos melhor ao que vemos, às formas, às luzes e sombras e tudo o mais. Em certa medida, creio que a fotografia sirva a essa função.
2.
É sempre a mesma história. Em toda volta prometo a mim que manterei o espírito viajante, visitarei novos lugares de Florianópolis, vou fazer isso e aquilo. É sempre o mesmo engodo. Deixo-me arrastar pela rotina, depois lamento. Enquanto isso, o tempo segue, não como soma, mas como contagem regressiva, não sei se em décadas, anos ou dias: cinco, quatro, três, dois…
1.
Quem sou eu? Agora em fevereiro entendi por que viajo, depois de tantos quilômetros rodados. Viajo porque a distância é o melhor disfarce para a solidão. É estranho que eu me sinta mais próximo de toda a humanidade que de qualquer humano e não sei bem como explicar isso. Nunca fui bom em ser presente. É um não sentir-se parte, um constante afastar-se de tudo. No entanto, quando fico, a responsabilidade me faz tomar parte de coisas que não sinto me pertencerem e isso me consome. Por outro lado, quando parto, posso ser apenas olhos e ouvidos abertos para o mundo, à procura de histórias. Porque, sobretudo, sou aquele que escreve.
“He venido a mirar el mundo hasta la entraña
y acariciar las cosas simplemente”
Jorge Carrera Andrade — Vocación terrena
Chegou sua vez de responder: por que você viaja? Qual é sua fome?
playlícia
Por que se conformar com o sentido de uma música se você pode inventar o sentido que quiser para ela? Essa é a minha relação com o gênero world music — termo detestável para se referir a tudo que não é cantado em inglês. Às vezes a entonação é o que basta para eu ficar com ares de quem olha a chuva escorrer pela janela do ônibus.
Se quiser ampliar seus horizontes musicais, venha comigo nesta viagem por canções em diferentes idiomas na playlist “Não entendo a letra, mas sinto cada palavra”.
vi por aí
Sou absolutamente doido, maluco, tarado, fissurado por São Luís do Maranhão. O Centro Histórico, mesmo com suas ruínas, é de uma beleza incomparável no Brasil. Agora com os restauros promovidos no Governo de Flávio Dino há de ficar ainda mais bonito. Então, confesso que meus olhos marejaram de saudade ao ver o curta Acalanto, de Arturo Saboia, como se a história não fosse motivo suficiente para chorar. É uma adaptação de Mia Couto, assista!
Falando em audiovisual, o novo clipe de Residente, This is Not America, mexeu fundo com o espírito latino-americano de muita gente. Sonho com o dia em que tenhamos o mesmo tesão de visitar Quito, Tiwanaku ou Tiradentes do que Europa ou Estados Unidos.
Thaís Campolina é uma poeta mineira que recentemente lançou o livro eu investigo qualquer coisa sem registro. Os poemas são carregados de humor e demonstram um olhar perspicaz sobre o mundo à volta da autora. Você pode baixar o livro de graça neste link.
Também mineira é a Carolina Dini, dona de pratos e textos deliciosos. Na newsletter Jornalzinho ela conta sobre um tour gastronômico na Itália que termina como uma celebração da vida.
Você já jogou Worldle? Nele, é preciso adivinhar qual é o lugar do globo com base no formato que aparece no mapa. Mas o melhor desse jogo, na verdade, é errar. O erro é uma oportunidade de descobrir um território desconhecido e embarcar em viagens loucas no Google. Tem muito mundo neste mundo!
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
Que delícia ler esse texto logo agora, que acabei de voltar de uma viagem <3
Já pensei muito sobre porque gosto tanto de viajar. Entre muitos motivos, uma coisa que sempre fica comigo é que, além da viagem em si, diz muito sobre a liberdade que normalmente tenho quando estou passeando. São dias em que o compromisso é aproveitar ao máximo o que dia me oferecer. Sejam férias, finais de semana ou feriados, não preencho minhas viagens de obrigações, não tenho trabalho ou tarefas a cumprir. Talvez eu fosse tão feliz numa segunda-feira em casa quanto sou em minhas viagens, se as segundas não fossem tão carregadas de tarefas (que mesmo quando não estão sendo cumpridas, estão à espreita). Adorei as reflexões.