Ao longo do tempo, a morte teve as mais diversas representações na arte. Ela foi um jogador de xadrez no filme O Sétimo Selo, uma senhora cansada no livro As Intermitências da Morte e uma musa gótica nas páginas de The Sandman.
No entanto, quando se trata da perspectiva da própria morte, muitos preferem fazer boca de túmulo. Isso é estranho porque, enquanto sociedade, temos um interesse mórbido pelo bater de botas alheio. Veja as matérias mais lidas em qualquer portal de notícias. Fulano ou Ciclana morreu; saiba mais!
Talvez nossa curiosidade pelo assunto esbarre na questão — o que existe depois da minha morte? Então, para evitar a pergunta, seguimos como se fôssemos imortais.
Acontece que na minha família temos dois costumes: morrer e nos prepararmos para a morte. Daí meu interesse pelo aspecto burocrático do tema.
Então, posso dizer exatamente o que há depois da vida: gastos, pendências e perrengues para quem fica. Não existe uma regra de etiqueta para morrer, mas é possível ter alguns cuidados para tornar esse momento menos penoso. Vamos falar sobre isso?
até morrer está caro
Viver está cada vez mais caro. Isso porque você ainda não viu o custo de morrer.
Dados da Associação Brasileira de Empresas Funerárias e Administradoras de Planos Funerários (Abredif) apontam um valor médio de R$ 2.500 para um serviço funerário básico no Brasil. Ou seja, é mais fácil comprar uma televisão 50 polegadas que dormir o sono dos justos.
Se optar pela cremação, pode acrescentar mais alguns mil reais na conta. Em compensação, a família economiza com a taxa de exumação e outras despesas administrativas do cemitério com o passar do tempo. Pois é, saímos da vida, mas nunca da dívida.
Existem planos e seguros que você pode contratar agora para evitar essas despesas póstumas. Alguns são bastante acessíveis, inclusive. Tenho um plano de cremação há anos e, para mim, foi um bom investimento. Pelo menos, deixarei a existência fazendo o que mais gosto: assando algo no forno.
o fantasma da burocracia
O funeral não é o único problema que fica para os demais resolverem. Nosso legado é uma série de pendências que precisam ser resolvidas com agilidade.
É por isso que precisamos ter alguém de confiança para deixar instruções que agilizem o processo. Por exemplo, se você vive de aluguel, sua família sabe qual é a imobiliária, quem é proprietário(a) do imóvel ou onde está o contrato de locação?
Daí a importância de listar todas as cobranças regulares, para que as pessoas próximas possam cancelá-las ou transferir a titularidade delas o quanto antes. Vale incluir nessa lista:
cartões de crédito;
contas de luz, água, telefonia e internet;
seguros, consórcios e outros financiamentos;
aluguel, condomínio, IPTU etc.
Organize todos os contratos em um lugar que alguém de confiança possa encontrá-los. Isso evitará cobranças desnecessárias que podem reduzir o patrimônio de quem faleceu.
É importante anotar também as dívidas, já que elas consomem o patrimônio deixado. Não existe herança de dívida, porém o usufruto dos bens ou do saldo bancário deixado pode ser bastante prejudicado, pois é com o patrimônio que se salda o valor devido.
falando em patrimônio
Você não precisa revelar exatamente quanto tem na conta do banco, qual é o valor investido nem nada disso. Mas é importante deixar registrado os bancos em que possui conta, se realizou investimentos em alguma instituição financeira, se tem saldo do FGTS e outros casos em que possa ter dinheiro retido. Como vimos, esse valor será importante para custear o serviço funerário.
Em relação especificamente aos bancos, o indicado é que a família informe à instituição sobre o falecimento para o bloqueio da conta. Então, é preciso um alvará judicial (e um advogado) para o recebimento de valores. Se a pessoa falecida deixar bens, antes será necessário fazer o inventário. Ou, se não tiver bens em nome dela, o inventário é dispensado.
Não vou negar que exista uma opção mais prática — e não recomendável — de resolver isso. Se o dinheiro for pouco, não houver outros bens nem dívidas e você tiver muita confiança em alguém para deixar sua senha, é possível esvaziar a conta e pedir o cancelamento sem passar pelos trâmites legais.
Profissionais com carteira assinada e pê-jotas ainda precisam deixar os contatos dos empregadores. Assim, os familiares podem informar-se dos valores a receber.
Outro caso interessante é que a economia digital nos possibilitou diversas fontes de renda alternativas. Por exemplo, tenho os e-books Passagem para Lugar Nenhum e Poemas Cheios de Vazios que geram alguns trocados na Amazon. Se você também é artista, tem curso on-line, participa de um programa de afiliados ou qualquer outra situação semelhante, existe a chance de continuar rendendo uma grana depois de abotoar o paletó. Pensando nisso, sua família sabe acessar esse espólio?
O que eu faria — e farei — é pedir para entrarem nessas plataformas em que tenho produtos à venda e redirecionarem os lucros a outras contas. O dia que tiver um contrato com editora, também deixarei o contato com meus familiares porque não me matei de trabalhar para depois ficar sem receber.
MEI(o) morto
Microempreendedores individuais não têm muitos direitos, então é importante nos apegarmos aos poucos que temos.
Um desses direitos é a pensão por morte, quando a pessoa falecida estiver em dia com a DAS-MEI. Podem receber a partir de um salário mínimo: cônjuge ou companheiro(a) e filhos com menos de 21 anos, pais dependentes financeiramente ou irmãos com menos de 21 anos e dependência financeira, nessa ordem de prioridade. Dependentes que apresentem invalidez não têm limite de idade.
Se alguma pessoa próxima se encaixar nessas circunstâncias, avise sobre essa possibilidade.
Já em relação ao CNPJ não é preciso fazer coisa alguma. Com a emissão da certidão de óbito, o cartório comunica a Receita Federal para dar baixa automaticamente.
palavras finais
É claro, todas essas considerações são destinadas ao proletariado, aos fodidos e não tão fodidos assim. Os ricos têm procuradores, advogados e assessores, enquanto os pobres só têm a si.
Resumindo, o primeiro passo é reunir todas as informações:
contratos e documentos importantes;
cobranças regulares;
dívidas;
contas e investimentos;
contatos de empregadores;
outras fontes de renda etc.
Se quiser ser bem elegante, faça logo um testamento.
A próxima etapa é dar orientações a alguém de confiança. Você pode compartilhá-las em detalhes ou simplesmente indicar um lugar em que podem ser encontradas.
Aqui, uma dica fundamental é nunca compartilhar senhas por e-mail ou mensagem de WhatsApp. Anote em um papel bem guardado para sua segurança.
Aproveite para falar sobre isso no Dia de Finados que se aproxima. Para contornar o estranhamento com o assunto, você pode até contextualizar a conversa dizendo que leu uma newsletter a respeito.
Dito tudo isso, meu último conselho é: evite morrer. Faz mal para a saúde e dá um trabalho danado.
Já que estamos no tema: qual é sua obra favorita que traz uma personagem representando a morte?
playlícia
Na música do Chile, se você conhece Violeta Parra, Victor Jara e Ana Tijoux, já sabe mais que muita gente. Isso é uma pena, porque o povo chileno tem uma tradição musical riquíssima e só na família Parra há uma dezena de talentos, como Isabel e Roberto Parra — filha e irmão de Violeta, respectivamente.
Se quiser descobrir mais da música chilena, na playlist Chile ayer y hoy reuni artistas de várias décadas que ouvi nos últimos meses. Aproveite!
existirmos a que será que se destina?
Teresina é uma cidade que se revela melhor nos detalhes. Até mesmo os teresinenses têm consciência disso. Sabem que não há muito o que mostrar, mas, se você reparar bem, encontrará um punhado de beleza.
Estive lá recentemente e descobri algumas dessas delícias:
A obra de Torquato Neto, em especial Três da Madrugada;
o pôr do sol no Parque Lagoas do Norte;
o fato de ser uma cidade bastante arborizada;
Renato Piau e a banda Validuaté;
cajuína bem gelada (da Lili Doces é melhor);
o sorvete de cajá da La Pâtisserie;
a hospitalidade dos teresinenses;
o Café Jardim Orquídeas;
as obras de Mestre Portelada;
o encontro dos rios Poti e Parnaíba;
o charme das casas nos arredores do Centro;
o SESC Cajuína;
a Feirinha Verde;
o pastel de carne de banana do Xeque Mate;
os concertos gratuitos da Orquestra Sinfônica e da Orquestra Sanfônica.
O engraçado é que, tivesse Caetano escrito uma palavra diferente na letra de Cajuína, eu jamais teria voltado a Teresina.
Na primeira vez que fui lá, estava no meio da viagem pela América do Sul, entre os 18 e 19 anos. Decidi passar por Teresina justamente por causa da música. Mas Caetano não avisou que se tomava cajuína gelada e eu, tanso e jovem, bebi quente. Um nojo! Tempos depois descobri o jeito certo. Então, prometi a mim mesmo que voltaria e beberia a cajuína gelada.
A vida tem me permitido viajar mais nos últimos anos e já era hora de pagar essa promessa, de fechar esse arco em minha história. Aí sim gostei! E não só da cajuína bem gelada, mas também do mais que provei com os sentidos por lá.
Não tivesse Caetano acertado no mistério, não tivesse eu errado, talvez nunca entenderia de fato Teresina. A matéria vida é sempre tão fina e se nos escapa aos dedos. É preciso ter certa experiência para segurá-la. É preciso maturidade. É preciso revisitar as coisas para reescrevê-las com justeza na memória.
vi por aí
Tentei assistir à série A Queda da Casa de Usher (Netflix) e achei o roteiro uma 💩. Como escreveu Cristhiano Aguiar, da Linguagem Guilhotina, “precisamos de mais palco e menos palanques”. Em vez dela, indico as séries Dracula (de 2020, com a divertida personagem da Irmã Agatha Van Helsing) e Marianne (trama francesa de 2019, cheia de sustos).
Falando em assombrações, a escritora brasileira Fernanda Castro — da ótima newsletter Às vezes eu falo — deu uma entrevista muito interessante ao portal The Horror Writers Association. Na conversa (em inglês), ela aborda a produção de horror latinoamericano, inspirações pessoais e dicas no gênero.
Um outro olhar sobre Santa Catarina. O Posfácio Hub de Jornalismo em Áudio lançou uma série de sete episódios rápidos discutindo a “literatura catarinense”, com destaques para as autoras do estado e os movimentos de resistência daqui. Depois de entrevistar grandes nomes da escrita contemporânea no Brasil, como Aline Bei, Jarid Arraes e Jeferson Tenório, as maravilhosas Carol Passos e Stefani Ceolla mergulham na literatura feita em Santa Catarina e a partir dela.
Tenho cinco convites do Bluesky para quem quiser. Dê um alô nos comentários e mande o Musk à merda por todo dia arruinar um pouco mais o Twitter.
P.S.: Não faça o macarrão ao molho de morango que comentei na última edição.
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
Eu não morri ainda. Eu conheço Ana Tijoux. Eu já fui em Teresina. Show
intermitências da morte, a máscara da morte rubra ... Mas vc te toda razão no que diz. Meu pai, que infelizmente morreu novo, dizia que quando morresse, quem ficasse vivo que se virasse. Sou filha única, então nem preciso dizer o perrengue. Já meu padrinho que morreu em 2014 aí em floripa fazia questão de me deixar a par de tudo nos mínimos detalhes. Quando eu reclamava, por ele falar demais na morte, ele sempre respondia "faço isso porque sei que vai sobrar pra ti, como te amo, só quero facilitar". No dia da morte dele, eu só abri uma gaveta e peguei uma pasta. Tava tudo ali. O resto é a burocracia que não tem jeito mesmo. Mas o pior é que ela - a burocracia - nos engole de uma forma que nos impede de sofrer, de vivenciar o luto. Isso é péssimo. Porque ele bate tardiamente, e aí se arrasta.
Depois da vida... viramos poeira. é fim. vida só essa mesmo. Melhor fazer bom uso. Não rola segunda chance.