você é uma estrela
Li muitos livros, vi uma quantidade razoável de filmes e até fui algumas vezes ao teatro. Sou o que você chamaria de um sujeito de cultura, se meu uniforme e meu emprego não me tornassem invisível. Então, sei reconhecer uma boa história e você está no centro dela.
Observo cada movimento seu, toda ida e vinda. Quando você pensa que não há alguém por perto, também estou lá.
Qualquer outro se sentiria um Deus em meu lugar. Eu não. Sou apenas um espectador, enquanto você é uma estrela.
Virei porteiro por acaso. As coisas não iam bem para meu lado e tentei a sorte de tudo que é jeito. Calhou esse emprego, que não é de todo ruim.
É monótono, sim, para quem não sabe onde olhar. São dias e noites abrindo o portão, recebendo encomendas, recolhendo o lixo…
Meus colegas de escala distraem-se com a pequena televisão da portaria. Passam as horas vendo programas de auditório ou as novelas. Para mim, o verdadeiro entretenimento está no outro monitor, o das câmeras de segurança. Minhas preferidas são as do elevador.
Tem algo de mágico no elevador, na sua imagem emoldurada pelo espelho. Penso nesse trajeto como um parto para a rua e um retornar ao útero do lar. Tanto acontece nessas subidas e descidas!
Vejo você ajeitar o cabelo ou a maquiagem antes de sair. Sei quando terá um dia importante pelo cuidado ao contemplar-se no espelho, desejando que tudo esteja perfeito. Vejo seu orgulho estampado ao vestir uma roupa nova, seu amor próprio renovado, sua selfie. Fui eu que recebi essa compra, lembra-se? Sim, você fica tão bem com ela.
Torço por você quando assisto aos seus ensaios de um minuto. Uma apresentação, uma venda, um pedido de aumento ou de namoro, o que será? Saberei se deu certo quando voltar, trazendo um vinho para celebrar ou um lanche gorduroso para comer em silêncio e esquecer.
Vejo sua tristeza e seu cansaço no final do dia. É tão profunda sua expressão quando encara o reflexo do que sobrou de você. Mesmo assim, no último segundo, esboça um sorriso para dar o boa-noite a quem esteja lhe esperando.
Reparo em tantas vocês que sobem ao apartamento 703. Na chegada, sempre o olhar apaixonado, o sorriso fácil, os braços dados. Uma ou duas horas depois, descem com os olhos vazios de amor ou cheios de lágrimas, os lábios apertados no gosto amargo da desilusão. Queria avisá-las do risco, mas sou apenas um espectador.
Às vezes, preciso fingir que não sei o que sei bem. Você me diz que foi ao médico, então lhe pergunto o que sente, como se não tivesse visto você tossir nas últimas três semanas.
Nem me importo com o fato de não saber meu nome — depois de tantos meses — quando sei que come mexicano toda terça à noite e trai sua esposa às quintas. Às quartas de manhã, sempre abana o elevador para que outros não notem o mau cheiro. Às quintas, muito tarde, procura marcas de batom no colarinho e põe de volta sua aliança.
Mas não se preocupe… Sei que faz parte do espetáculo e guardarei seus pecados, dramas, sonhos e esperanças para mim. Nem posso pedir mais, quando já tenho tudo de você, sua alma contida nessa caixa mágica de metal.
Continuarei aqui calado, invisível, apenas observando. Sou seu maior fã. Só quero que você continue brilhando, brilhando, brilhando…
Chegamos a mais de 300 assinantes! Que bom poder honrar essa confiança com as ideias mais esculhambadas que passam pela minha cabeça.
Dúvidas, sugestões ou reclamações, favor falar com a gerência.
playlícia
Para combinar com esta edição, a sugestão musical da vez poderia ser Every Breath You Take tocando sem parar.
No entanto, como recém entramos na primavera, ou primaverão em muitas partes do Brasil, quero resgatar uma playlist feita para esta época do ano. Ouça As rosas não falam, mas cantam.
vi por aí
Uma das melhores coisas que li no mês foi esta citação do pintor catarinense Aldo Beck: “Eu ando por aí desenhando tudo com muita fúria, com medo de que no dia seguinte aquilo tenha desabado. Eu chego a me sentir um pouco responsável pela memória das coisas. É a parte que me cabe. Trabalho em cima do que ainda resta”. Isso me dá uma vontade danada de sair por aí registrando tudo com muita fúria.
“Eu sinto que o gosto amargo que as redes deixam é o da gente nunca pode estar verdadeiramente entre os nossos, porque é muito difícil conseguir construir algo legítimo quando tudo o que fazemos é permeado por algum interesse financeiro”, escreve Carla Soares em mais um delicioso texto.
O projeto que pode derrubar a internet no Brasil lembrou-me de como a internet é uma grande geração de lixo. Desta vez, nem falo das redes sociais… Mais de 90% do tráfego digital passa por cabos no fundo do oceano, produzidos com toneladas e toneladas de materiais que duram um par de décadas. Nem os satélites, mais lentos, são uma opção mais ecológica.
Bad Times at the El Royale é um filmaço do mesmo diretor e roteirista de The Cabin in the Woods. A edição e as atuações são um espetáculo, mas quem rouba a cena é o vozeirão da Cynthia Erivo.
Descobri que o portal da Embrapa tem receitas um tanto peculiares. Fiquei tentado a fazer o macarrão ao molho de morango, que leva alho e manjericão, além da própria fruta. Na próxima edição contarei se deu certo.
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
Um texto sensível. Belas palavras.
Mais um texto excelente! Bom jeito de iniciar o fim de semana.
Além das músicas pode compartilhar receitas também. Fiquei curiosa com o pan de cristal. Esse eu não conhecia. Deu vontade de fazer :)