Você sabe o que The Sandman e Stranger Things têm em comum? Digo, além de estarem na Netflix.
Para quem não sabe, The Sandman é uma história em quadrinhos escrita por Neil Gaiman. Os 75 fascículos originais foram publicados entre 1989 e 1996, sendo uma das maiores obras literárias do século passado.
A história acompanha os sete irmãos Eternos: Sonho, o personagem principal, além de Destino, Morte, Desejo, Desespero, Delírio e Destruição. A adaptação para série estreia no dia 5 de agosto.
Já Stranger Things dispensa introdução. Contudo, há um grande spoiler a seguir para quem não viu o fim da quarta temporada.
Pois bem. O que as duas narrativas têm em comum? Ambas usam a mesma gramática da emoção, ou pelo menos o mesmo recurso que chamo Regra de Três.
a beleza da repetição
Qualquer linguagem ou língua só funciona porque usamos os mesmos símbolos repetidas vezes. Isso vale para a palavra falada, para elementos gráficos, para os gestos e também para as emoções. Se nada repetisse neste mundo, nada entenderíamos.
A repetição ainda tem outra vantagem: é econômica.
Digamos que você esteja com alguém conhecido em um evento muito chato. Então se olham com certa expressão no rosto. Você pergunta: o que foi? A pessoa diz: quero ir embora.
Outro dia, outro evento chato. Novamente se olham com aquela expressão. Desta vez, você arrisca: quer ir embora? Ela confirma.
Caramba, vocês estão de novo em uma maçada! Mas agora não é preciso explicar, basta trocar a mesma expressão para se levantarem sem dizer palavra e sair.
Essa repetição tornou a comunicação mais enxuta sem perder o sentido ou o impacto. Na verdade, pode-se dizer que o impacto foi intensificado, porque se criou uma linguagem íntima entre vocês. É por isso que, após o fim de um relacionamento, sentimos especialmente a falta das pequenas coisas: entender pelo olhar, as piadas internas, os costumes bobos…
Repetir economiza explicação e aumenta o impacto. Não à toa, é um recurso tão interessante na ficção, quando autores querem nos fazer sentir de uma forma mais profunda.
como funciona a regra de três?
Chamo Regra de Três porque ela precisa de, no mínimo, três passos para funcionar em plenitude:
Descoberta: é o passo mais longo e mais detalhado. Aqui deve ficar claro para o público a relação entre causa e consequência. Por exemplo, filmes de terror costumam explicar o modus operandi do assassino já na primeira morte, para que a audiência possa identificar os sinais de sua presença nas cenas seguintes.
Confirmação: mesma ação, mesmo resultado. Não há necessidade de apresentar tantos detalhes desta vez. Mas, sem esta etapa, não se cria um padrão, o que torna a expectativa menor para o que vem depois.
Intuição: na terceira ocasião, sequer é preciso mostrar a consequência, apenas o começo da ação. O público “sabe” o que vai acontecer em seguida e vai se emocionar ao primeiro sinal da repetição.
Essa tríade elimina a possibilidade da mera coincidência. É como dizem: “the third time’s the charm”. Na terceira vez é que rola.
the sandman
Em The Sandman, o fascículo 8 é bem comedido em termos de ação, mas não poupa emoção. Na história, Sonho e a irmã Morte saem juntos para coletar algumas almas.
O primeiro encontro dura quase quatro páginas, da chegada ao local, o diálogo com o senhor prestes a morrer, o som das asas carregando a alma, até a troca de cenário. Essa é a descoberta de como a Morte atua.
O segundo encontro leva duas páginas, porque já não há necessidade de tantos detalhes do processo, e tem um fim idêntico ao do primeiro.
O terceiro e último encontro tem apenas uma página, mas que dor! Na metade de cima, os quadrinhos mostram a mãe que deixa o bebê no berço, enquanto Sonho e Morte entram no aposento onde a criança dorme. Você pensa: não, o bebê não!!! Então desaba como a reação da mãe na metade de baixo da página.
Como curiosidade, a obra Daytripper, dos brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá, utiliza o mesmo recurso de forma igualmente devastadora.
Por outro lado, a repetição também pode ter efeito cômico.
No filme Tempos Modernos, quando o operário de Chaplin está louco de tanto apertar parafusos (veja a cena), primeiro ele vai atrás dos botões na saia de uma funcionária até a rua, depois aperta um hidrante. Note que toda a ação acontece em sequência, dentro do quadro. Então, quando a imagem corta para algo fora do quadro, uma madame com grandes botões no busto, rimos por antecipação porque sabemos o que virá. A repetição conecta a história.
stranger things e o mundo invertido da expectativa
Autores também gostam de brincar com expectativas. É por isso que, algumas vezes, você verá uma reviravolta no terceiro passo da Regra de Três. Aí entra Stranger Things, mais especificamente o personagem Eddie.
Assim como a Regra de Três é usada para levar o público a determinado estado emocional sem muita explicação, ela também pode marcar a mudança de um personagem e criar um misto de emoções.
Veja o caso de Eddie. Depois do incidente com Chrissy, ele foge e se lamenta disso. Então, escapa também do confronto com Jason.
Nessas duas ocasiões, ele reforça que não é herói, que só sabe fugir. Até o momento que se vê de novo na encruzilhada: correr ou ficar.
O fato de ele quebrar a expectativa e decidir lutar marca a evolução do arco narrativo. Ou seja, para que a transformação do personagem seja significativa, primeiro ele deve repetir certo comportamento algumas vezes.
Entretanto, a escrita de Stranger Things é muito mais literal que a de The Sandman. Eddie não precisava ter dito, após o sacrifício, que daquela vez não fugiu. Mas economia narrativa não é muito o forte de uma série com episódios de até 2 horas e 30 minutos.
Além disso, a inversão do terceiro passo pode ser usada na transformação do mocinho em vilão ou como balde de água fria. Imagine que a mesma ação dê certo duas vezes, mas na hora mais importante acontece algo catastrófico.
Então, repita comigo! Se na vida real a expectativa é uma m&#*@, na ficção ela é um poderoso recurso narrativo.
Você se lembra de alguma história que use esse recurso e, na terceira vez, apenas dê um sinal do que vem em seguida? Deixe a dica nos comentários!
playlícia
Estive a ouvir música portuguesa neste mês e encontrei artistas bué (bem) interessantes que gostava (gostaria) de compartilhar agora com a malta (galera).
Ouça a playlist Descobrindo Portugal no Spotify ou no Tidal.
vi por aí
Falando em Portugal, li Jóquei, da lisboeta Matilde Campilho. Ela tem uma poesia muito viva, muito veloz. Minha sensação é de estar em uma viagem de carro com o livro aberto. Como ela definiu em certa entrevista, são “várias imagens do mundo”. A sucessão de cenas impressiona pelo movimento, muitas vezes sem contexto para os detalhes. Passou voando!
Também tenho lido Como ler os russos, de Irineu Franco Perpetuo, e só agora percebi o quanto Dostô e Tolstói eram contemporâneos. Inclusive, o ano de 1866 deve ter sido espetacular para o leitor na Rússia. Nele foram publicados os romances mais célebres de cada autor: Crime e Castigo (em 12 volumes mensais) e Guerra e Paz (entre 1965 e 1867), na mesma revista e tudo.
Má notícia: o Brasil perdeu 764 bibliotecas entre 2015 e 2020, segundo o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP). Isso num país em que o preço médio dos livros para o mercado subiu 7,2% entre 2020 e 2021, como revela a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro. Entre as obras gerais — descontados os livros didáticos, religiosos e científicos, técnicos e profissionais — o aumento de preço foi ainda maior: 11,8%.
Boa notícia: estreou a terceira temporada do podcast Posfácio, sobre o mundo dos livros. É um orgulho saber que um projeto que dá voz à diversidade na literatura parte daqui de Florianópolis.
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris