uma boa garota
Todos dizem que sou uma boa garota. Sempre fui, desde nova, quando vivia sob o grande escuro que cobria as ruas da cidade.
Hoje quase não vejo mais o escuro. Aqui há luzes o tempo todo por causa dos humanos mexendo em máquinas, fazendo máquinas.
Por ser uma boa garota, vivi mais que meus irmãos. Cuido do meu focinho, não corro entre os carros, respeito as regras. Os humanos gostam disso, tanto que me trouxeram para morar com eles em uma grande casa, a maior que já vi.
Também vivem nessa casa outras boas garotas. Mas não como eu. Sou a melhor garota do mundo e, logo, também do espaço.
Antes me chamavam de Kudryavka (Encaracoladinha). Acho que o focinho dos humanos não é bom, porque precisam colocar nomes em quem eles conhecem. É tão mais fácil cheirar o traseiro para conhecer…
Sinto falta de cheirar traseiros. Na casa, eles colocam as boas garotas em camas cada vez menores e colocam roupas sobre nossos traseiros, como os filhotes humanos. Algumas garotas ficam tão incomodadas que nem conseguem aliviar a barriga. Mas sou boa de verdade e respeito as regras.
Esta é a maior regra das boas garotas: ser boa é ser triste às vezes.
Albina é minha melhor amiga. Fomos trazidas no mesmo dia e já na primeira cheirada soube que ela tinha filhotes na barriga. Os humanos só foram saber depois. Entre nós duas, as melhores garotas da casa, então fui a escolhida para passear no grande escuro.
Dizem que quem vai para lá é astronauta. Não sei o que uma astronauta deve fazer e acho que os humanos também não sabem. Nenhum deles foi para lá.
Nunca vi os humanos tão nervosos. Eles correm de um lado para o outro, gritam e mexem em máquinas sem parar.
Todos os dias, fazem comigo brincadeiras de girar rápido que mal consigo respirar. Depois, eles me colocam presa em uma cama ainda menor. Também trocaram minha comida por uma água estranha. Mas, a cada dia, eles me dão mais atenção. Acho que amar significa dor para eles.
Outro dia mesmo, humanos desconhecidos vieram me visitar. Tinham brinquedos para colocar na frente da boca, mas sem morder. Queriam que eu falasse e falei:
— Au! Au!
Todos riram e ficaram muito felizes com o que disse, até mudaram meu nome para Laika (Latidora).
O humano Vladimir é o que mais gosta de mim. Ontem me levou para a casa dele, menor que a casa das boas garotas. Mas lá tinha filhotes humanos para brincar e comida de morder e ossos e janelas para ver o grande escuro. Foi a primeira vez em muito tempo que pude ver o grande escuro. Já não me parecia tão escuro assim, cheio de bolas de luz.
Como essas bolas foram parar lá em cima?
Acho que os humanos as perderam. Acho que sei o que uma astronauta faz: pega bolas de luz.
Quando acordei, Vladimir me levou à máquina que sobe no grande escuro. Até a máquina tem nome, Sputnik. Todos os humanos da casa das boas garotas vieram. Estão tristes porque vou passear lá no alto sozinha. Eles beijam meu focinho, fazem carinho na minha cabeça e dizem que sou uma boa garota.
Aprendi que o amor também pode ser bom. Mas é tempo de partir.
Meu coração meu coração
O espaço me abraça tão apertado que mal consigo respirar
Já fiz essa brincadeira antes mas agora dói dói dói mas agora tenho medo
Estou mais em cima e mais em cima
É tão lindo lá embaixo lá onde moro é uma bola no meio do grande escuro preciso dizer isso para as outras boas garotas
Os humanos não me disseram quando vou voltar do passeio acho que logo vou contar para elas
Tudo gira cada giro mais cansada mais aperto no coração mais peso nos olhos
Como vou buscar as bolas de luz com tanto sono?
Quero dormir
Fecho os olhos meu destino é logo ali
Sim estou chegando eu sinto
O grande escuro
Fiz certo meu papel se você terminou essa história esbravejando à la Dylan Thomas: Laika, do not go gentle into that good night!
Afinal, não é preciso conservar a revolta diante do sofrimento?
playlícia
Falando em coisas russas, não é a primeira vez que me inspiro lá para escrever. A edição Pena de morte trazia essa russianidade, vamos lembrar.
Nessas e outras, encontrei uma identificação com o compositor Mily Balakirev pelo fato de que levou 33 anos para terminar a Primeira Sinfonia, entre 1864 e 1897. O poema sinfônico Tamara foi bem mais rápido, 15 anos. Quando chegou à Segunda Sinfonia, Balakirev pegou o jeito de vez e a compôs em apenas 8 aninhos.
Isso me inspira como alguém que está há 4 anos tentando escrever o segundo romance. Não porque seja possível criar belas obras nesse andamento grave, e sim porque o reconhecimento de Balakirev foi diminuído pela constante demora. Quando enfim terminava uma composição, os contemporâneos já haviam aplicado as ideias contidas nela.
Então, presto, presto!
filosofia de viagem
Estive em Salvador há algum tempo e lá comecei a questionar o que deixamos, em troca, para as cidades que visitamos. Talvez a resposta mais simples fosse: dinheiro. Pagamos para estar lá. Mas a Navalha de Ockham não satisfaz a imaginação nem o ócio criativo, então continuei pensando.
O que pagamos, na verdade, é o presente do lugar. Pela história, não há fortuna que possa recompensar todas as mãos que construíram uma cidade ou moldaram sua cultura. O turista estará sempre em dívida. Só se pode descontá-la pela atenção, pela curiosidade, pelo respeito.
Para viajar é preciso abrir o bolso, sim, sem deixar de abrir bem os olhos e ouvidos. Assim, levamos a admiração pela cidade como semente para expandir seu território no interesse de outrem. Esse é nosso maior pagamento.
vi por aí
Aprendi a fazer medialunas porque tenho saudade de comê-las em Buenos Aires. Tomado desse espírito portenho, fui pesquisar poetas de lá e acabei encontrando o fabuloso Atlas Lírico da América Hispânica. O portal tem traduções em português de muita gente conhecida ou que vale conhecer. Adorei “Vivemos o dia”, de Jorge Oscar Bach.
Cidades estão sempre em transformação. No caso de Florianópolis, uma ilha, foi preciso aterrar muita coisa para dar lugar a mais prédios e mais carros. Tanto que só recentemente descobri — graças a uma pintura de Martinho de Haro dos anos 1940 — a existência de uma ilha anexa que foi apagada pelo tempo. Melhor dizendo, pelo aterramento. Fábio Brüggemann e Dennis Radünz contaram essa história da Ilha do Carvão em vídeo.
Ao escrever “Uma boa garota”, usei principalmente o perfil da Revista Smithsonian como referência (em inglês). É verdade, por exemplo, que Albina estava prenha e que o cuidador Vladimir Yazdovsky levou Laika para casa por uma noite porque “queria fazer algo legal pela cachorra”.
Já ouviu falar de Miriam Makeba ou das línguas coissãs? São línguas faladas no continente africano, caracterizadas pelos sons de cliques. Miriam foi uma cantora sul-africana que teve uma carreira internacional cantando dessa forma. Mas a história dela vai além disso. Como destaca o projeto Biografias de Mulheres Africanas, ela também foi uma importante ativista anti-apartheid.
O texto de Juliana Cunha sobre os perigos da leitura é uma das coisas mais espirituosas que li neste ano.
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris