pena de morte
"Em nenhum lugar do mundo se dá tanta importância à poesia: é somente em nosso país que se fuzila por causa de um verso."
Óssip Mandelstam
O caso aconteceu durante os Anos de Terror, quando o Regime punia qualquer pensamento dissidente.
Sobre essa época, conta-se que o poeta Krisevski foi preso por alguns versos criticando o Partido:
“Tudo mudou como antes:
regime para o povo
enquanto nossos comandantes
comem de novo e de novo.”
Porém, até hoje se discute tal atribuição. Um notório crítico, por exemplo, exime o autor da culpa com a defesa de que este jamais produziu uma única rima rica em toda sua obra.
A verdade é que Krisevski não foi um grande poeta nem mesmo um bom poeta. Ainda assim, ele conseguiu a proeza de ser o mais poeta de todos os poetas da pátria.
Seu processo de condenação foi rápido; sua punição, brutal. Em vez de o condenarem à morte física, sentenciaram-no ao silêncio, que é a morte da alma do escritor.
Krisevski acabou com uma pena de 20 anos de trabalhos forçados na província de Catarineve e, se ousasse escrever um só verso nesse período, então seria fuzilado. A ironia disso é que, calado, aí sim ele era um poeta.
cuidado com as metáforas!
A prisão era um prédio de três andares, quadrado, mas com um enorme espaço aberto no meio, onde ecoavam os gritos dos presos. Ali no centro, à vista das celas, estava a área destinada aos dois eventos recreativos disponíveis, os pronunciamentos oficiais e os fuzilamentos. E a quantidade de buracos na grossa parede do pátio servia de aviso:
— Não economizamos munição. Obedeçam, ou…
Assim que o poeta chegou ao confinamento, o Capitão fez saber a pena a todos. Ordenou que delatassem o menor sinal de poesia, pois tinha certeza de que, mais cedo ou mais tarde, Krisevski cederia ao impulso criminoso.
Não faltavam tentações para isso. Por ser um homem de muita letra e pouco músculo, ao recém-condenado coube a função de fazer o registro das movimentações da prisão. Armas, ferramentas, alimentos, pessoas… tudo que entrava ou saía de lá passava pelos livros de Krisevski. Com isso, tinha papel e tinta sempre ao alcance.
Mas os guardas revistavam tudo ao final do expediente, o poeta e os livros. Se houvesse um só rabisco de ideia original, uma palavra que não a realidade da prisão, aquilo seria o fim.
Então, um susto! Certa manhã, no fim de um longo inverno, o sol voltou à província de Catarineve. Ao comentar o acontecimento com um dos guardas, Krisevski teve o descuido de dizer:
— Nada como o sol para desnevar a face…
Pronto, aí estava o crime! O poeta foi levado imediatamente à presença do Capitão. O primeiro guarda relatou que “o detento cometeu uma metáfora para a alegria”, enquanto um segundo interpretou aquilo como esperança.
Krisevski foi ágil em defender-se. Disse que tinha literalmente neve na cara e mostrou ao Capitão. Além disso, sem ele, a prisão perdia um eficiente registrador.
O argumento pareceu lógico e o aspecto poético da acusação foi logo esquecido. Menos pelo poeta.
o silêncio
Depois desse episódio, Krisevski já não dizia palavra fora de suas atribuições. Até nos registros tinha o cuidado de não escrever em sequência “chá” e “pá” ou “porção” e “munição” para não pensarem que fazia rimas sorrateiramente.
A prisão do espírito é pior que a do corpo para algumas pessoas. Krisevski era uma delas; sentia-se encolher dentro de si a cada dia, prestes a desaparecer, quando só restaria um objeto mecânico em forma de homem no seu lugar.
Passaram-se dois anos da pena e o condenado não podia mais suportá-la. Então, foi numa sexta-feira que Krisevski assinou sua carta de morte ou de alforria. Contam os sobreviventes dessa época que ele terminou as funções do dia e declarou aos guardas:
— No domingo, ao cair do sol, escreverei um poema.
Depois, não falou mais nem comeu nem fez coisa alguma. Apenas se deitou em sua cela e ali esperou a hora.
O Capitão ficou contente com a notícia. Há algum tempo não executava alguém e isso era ruim para a disciplina dos presos. Mas aproveitaria aquela oportunidade para dar uma grande lição a todos, ah se daria!
As ordens do Capitão foram claras: uma hora antes do pôr do sol de domingo, levariam o poeta ao pátio. Em frente à parede de fuzilamento, deveriam colocar mesa, cadeira, papel, tinta e pena. Que o deixassem escrever os versos. E que o matassem em seguida. Por fim, o próprio Capitão faria um discurso para provar que o Regime sempre tinha a palavra final. Seria perfeito.
o grito
Chegou o momento e cumpriram-se as ordens. Uma hora antes do pôr do sol de domingo, Krisevski sentou-se no pátio central sob o olhar vigilante de todos, guardas ou prisioneiros como ele. Não foram poucos os que apostaram, de pedaços de pão a cigarros, que ele morreria por causa de versos muito ruins ou que não teria coragem de escrever.
Mas Krisevski escreveu. E escreveu, e escreveu, e escreveu.
Conforme o poema brotava de sua pena, um fio de lágrimas congelava sobre a face. Tremia, vibrava ao achar a palavra certa, rabiscava cada canto da folha de papel, neste e naquele sentido.
Durante esse frenesi, fez-se silêncio na prisão pela primeira vez. Pairava a expectativa do tiro, mas ainda mais a curiosidade pelos versos. Que palavras poderiam comover alguém de tal maneira? O que teria a dizer um poeta prestes a morrer por sua poesia?
Um dos guardas chegou a sugerir que dessem mais folhas a Krisevski. Outro quis levar-lhe uma vela, posto que escurecesse. Já o Capitão negou uma e outra coisa, enquanto participava intimamente do interesse coletivo.
Krisevski escreveu até o último raio de sol. Então, deu por encerrada sua missão e levantou-se atrás da mesa.
— Estou pronto — declarou o poeta.
Nesse momento, acenderam as luzes da prisão. Quem presenciou a cena jura que não havia mais qualquer arrebatamento na expressão de Krisevski. Estava sereno como a noite.
O Capitão aproximou-se, este sim com uma feição curiosa, dizendo ao condenado:
— Pois bem, entregue o poema.
— Não.
— Como assim, não?
— Não.
De repente, o poeta rasgou os versos que passara a última hora escrevendo e engoliu-os numa só bocada.
Queixos caíram. Olhos arregalaram. Diante de todos, a expectativa espatifada!
O Capitão foi o primeiro a perceber o grito daquele gesto silencioso. E foi ele mesmo quem puxou a pistola e deu fim a Krisevski com seis tiros no estômago, como se quisesse tirar dali os versos a ferro e fogo. Mas suas próprias entranhas queimavam e ele não discursou.
o eco
Acreditavam que o poema teria morrido com o poeta. Até que, ainda naquela madrugada, a poesia renasceu da forma mais insuspeita.
Muitos presos que jamais haviam lido um verso sequer viraram escritores de primeira categoria durante os sonhos. A imaginação de cada um preencheu a lacuna da curiosidade e agora saía da pena deles as palavras que mataram Krisevski.
Ninguém confessou pela manhã o que sonhara. No entanto, quando se libertaram, vários deles tornaram-se também poetas.
nó na cuca
É importante para quem escreve estar consciente dos próprios cacoetes do estilo. Um dos meus é inverter a ordem das frases, chamado hipérbato, e preciso lutar contra ele.
Pensando nisso, cheguei ao caso de duas frases que ganhariam sentidos diferentes com a mudança de ordem. Algo como “velho amigo” e “amigo velho”, só que mais sutil.
Você percebe alguma diferença nestas frases?
A vida seria eterna, não fosse a morte.
Não fosse a morte, a vida seria eterna.
Deixe nos comentários sua interpretação sobre elas. Estou curioso, rs.
playlícia
Estive ouvindo muita música instrumental. Desde a pianista japonesa Hiromi, ao grupo multinacional Snarky Puppy até o berimbau de Naná Vasconcelos.
Mas poucos instrumentos me soam tão hipnóticos quanto o kora. Ele é uma espécie de harpa usada na música de países como Senegal, Gâmbia, Guiné e Mali. Um ótimo exemplo do kora está na obra de Toumani Diabaté, especialmente no álbum The Mandé Variations.
Deixo aqui os links para ouvi-lo no Spotify ou no Tidal.
vi por aí
Coincidência ou espírito dos tempos? No mês passado, foram lançados dois discos que começam com músicas falando sobre “doomscrolling”: Metric com Doomscroller e Dawes com Doomscroller Tries to Relax. Para quem não sabe, o termo representa o ato de ficar rolando o feed compulsivamente atrás de notícias ruins. Vou traduzir como degrinrolar, mas aceito sugestões.
Carla Soares escreveu recentemente que qualquer receita que encontramos “é um registro alheio de um modo de viver”. Desde então, não sai da minha cabeça que uma receita possa ser algo tão íntimo quanto um poema ou a página de um diário. Até imagino uma história delicada de alguém que descobre a vida de outra pessoa apenas pelas receitas que esta lhe deixou.
Falando em histórias delicadas, estou lendo o romance de estreia de Tatiana Lazzarotto, Quando as árvores morrem. Ela tem uma escrita muito bonita, que envolve com sutileza o tema do luto, e é capaz de abraçar a vida que fica. Leia aqui um trecho do livro.
Dica de série: The White Lotus (HBO Max). É uma tragédia da atualidade, mas entre constantes explosões de riso e algumas doses de suspense. O roteiro é impecável, todo o elenco entrega atuações em alto nível e a trilha sonora é um deleite à parte. Já é uma das minhas favoritas!
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
A vida seria eterna, não fosse a morte (eterna) - só uma pode ser eterna
A vida seria eterna, não fosse a morte ( que chega para interromper a eternidade da vida).
Adorei a newslenta :)
Sobre as frases, minha impressão é mais pela interpretação mesmo do que, talvez, pela semântica. A primeira me soa mais brutal, como se a eternidade da vida fosse cortada pela menção brusca da morte. No segundo caso, embora o foco devesse estar na morte por ser a primeira mencionada, a continuidade da vida ressoa, como se ela fosse eterna de algum modo (a impressão dela segue além do ponto final).
Pelo menos, é como soa pra mim!