um homem original
“A todo artista é feita a questão: De onde você tira suas ideias?
O artista honesto responde: Eu as roubo.”
— Austin Kleon em Roube Como um Artista
A vida noturna de toda cidade tem suas figuras típicas. Você sabe de quem estou falando, até espera a presença delas, ainda que não as conheça.
O curioso é que ele não era desses que se destacam na multidão à primeira vista, mas todos o reconheciam porque estava sempre lá. Sempre ancorado nos lugares de costume. Sempre junto ao balcão.
O que o distinguia era sua indistinguibilidade. Ao contrário de tantos que se fantasiam de outros para sair, ele se vestia com discrição, como um funcionário público batendo ponto no bar.
Com o passar do tempo, desenvolvemos aquela afinidade distante resumida a um solene abaixar de cabeça e um “ô” que não chega a ser “oi” quando nos esbarrávamos por aí. Conversamos uma única vez, numa ocasião em que ele me pareceu particularmente reflexivo. Foi assim: encostei-me ao lado dele no balcão para pedir uma Original à moça do bar. Então o sujeito virou-se para mim, dizendo:
— Esse negócio de originalidade é superestimado.
Aquilo me pegou de surpresa, mas também achei divertido o suficiente para dar-lhe corda.
— Como assim?
tudo já foi dito
A originalidade é superestimada. Ponto. Dá pra viver muito bem sem ela, por sinal. Veja meu caso: desde meus 18 anos não tive um só pensamento original. Fiz faculdade, concurso, trabalho… e tô aí. Se for analisar bem, antes dessa fase tudo que eu pensava já vinha das coisas que via e ouvia. Acho até que nunca pensei algo original em toda minha vida e não conto isso pra me gabar, não.
Sabe, num planeta com quase 8 bilhões de pessoas, depois de 6 mil anos de civilização, é sério que essa gente ainda liga pra originalidade?
Francamente, é um desperdício. A casa já está pronta, sabe, só entre e descanse.
Mas olhe em volta. Todo mundo quer ser único, especial, a voz do anjo da Revelação. E o pior é o que as pessoas acham que eu sou original. Isso me deixa puto. Puto!
Sabe, eu solto numa conversa qualquer merda que alguém já tenha dito e redito como:
— O perigo de fazer terapia é se descobrir babaca.
Ou:
— Entre o cristianismo e o budismo, prefiro o budismo porque me permite pagar meus pecados a fiado no Serasa divino.
Aí sabe o que fazem? Batem palma. Chamam de “necessário” e outras palhaçadas.
Agora, mais ridículo ainda é a cara que fazem quando falo em inglês. É só dizer “the times are a-changing” para a situação mais patética e as pessoas olham como se fosse o próprio Aristóteles em carne e osso.
Sabe o que todo mundo que acredita na originalidade tem em comum? Falta de repertório. É um desrespeito. E não estou falando só do pensamento, não. É o jeito de vestir, a decoração dessas biroscas onde a gente bebe, a arte, a política… Não há nada de novo sob o sol!
É por isso que a originalidade é superestimada. Muitos já disseram algo assim, nem isso precisei inventar. Por mim, eu simplesmente desapareceria na multidão. É menos cansativo que fingir ser alguém. Agora você me dê uma licencinha que preciso tirar aquela água do joelho.
tirando um peso das costas
Não voltamos a nos falar nem naquela noite nem em qualquer outra noite, mas eu pensava com frequência nas coisas que ele disse.
Ironicamente, quanto mais pensava a respeito, mais ele me parecia original. Negava com tamanha força qualquer reconhecimento que por isso mesmo era único.
Eu queria contar-lhe que passei a seguir sua filosofia desde então. Noite após noite, olhava para o balcão à procura de uma oportunidade nem que fosse para agradecer-lhe. A verdade é que nunca tive muito a dizer e sinto-me melhor agora sem precisar caçar capivaras no deserto. No entanto, suas aparições tornaram-se cada vez mais raras.
Já faz meses da última última vez que o avistei. Considero isso mais uma prova de sua originalidade, pois enfim ele conseguiu o que desejava. Por vontade própria, ele desapareceu na multidão.
um ano de newslenta
Norman Rockwell foi um dos maiores ilustradores dos Estados Unidos. A respeito da própria obra, ele disse: “Sem pensar muito em termos específicos, eu estava mostrando a América que conhecia e observava para outros que talvez não a tenham percebido”.
Aí está uma lição para todo artista. O que o tornou reconhecido não foi mostrar algo que nunca alguém vira, e sim destacar o que ele via muito intimamente. Essa proximidade — essa paixão pelo tema — então transborda para o trabalho e é o que permite criar uma conexão profunda com o público.
Falando em público, agradeço imensamente a cada serzinho de luz que está acompanhando a Newslenta. Sim, você aí! Em setembro comemorei um ano de newsletter e muitas bobagens escritas. Por sinal, tem alguma edição favorita?
playlícia especial para a festa da democracia
Neste domingo vamos decidir o Brasil que queremos, por nós e por todos que morreram durante a pandemia, de mortes muito evitáveis, sem poder exercer esse direito. Mas, como expliquei em outra edição, meu voto é secreto.
Digo apenas que fiz uma playlist para ouvir no caminho até o local de votação. Ouça a trilha Meu voto é secreto para animar sua ida e votar com esperança.
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris