não se complica
o remédio para tudo é fazer, mesmo se der errado. agora você sabe um jeito a menos de errar.
não se complica
Meu avô teve muitas versões. Construtor aposentado, viúvo mulherengo, gentil teimoso, irrequieto por natureza, terror dos sábados e domingos de manhã, intérprete de sonhos do Jogo do Bicho, pródigo com os chegados... E agora — morto.
O velório atraiu uma multidão ao cemitério. Muitos vieram se despedir de Sebastião, ou Bastião para os íntimos, que eram todos. Ele foi um dos primeiros a se mudar para o bairro e ali ajudou a erguer muitas casas. Fez uma família, fez amigos, fez história. Era uma fortaleza e o apelido lhe servia bem.
Meus pêsames, ele foi um grande homem. Nós, a família, recebemos durante toda a manhã o carinho do bairro por herança. Às onze horas deram início à marcha até o túmulo. Então minha mãe apontou o caixão dizendo:
— Ele adoraria que você o levasse. Você era o neto preferido dele, sabia disso?
Tremi por instinto. Bastião foi o único avô que realmente conheci. A esposa dele, minha avó materna, morreu quando eu era pequeno e não tenho lembranças dela. Meu pai veio de outro país e só vi meus avós paternos por foto. Para quem teve uma única raiz como referência, caí bem longe do pé.
Meu avô resolvia tudo na ação. Já eu vim com os nervos pelo avesso, uma criança ansiosa, cheia de medos e dúvidas. Não se complica — ele me dizia. Afinal, não eram as coisas de fora que me complicavam, era eu mesmo cá dentro. Aos dezessete anos, pouco havia mudado. E se o caixão fosse pesado demais para mim? E se eu tropeçasse? E se me envergonhasse diante do bairro inteiro?
II
Sim, sabia que era o neto favorito dele. Era também o único neto homem, talvez daí a relação mais próxima que tínhamos.
Morávamos em três casas no mesmo terreno: a da minha mãe, a da minha tia e a do meu avô, todas construídas por ele. Nos fundos ainda havia um pequeno rancho onde Bastião passava a maior parte do tempo, serrando, martelando, furando, lixando e montando as coisas que lhe davam na veneta. Aos sábados e domingos de manhã, era certo que acordaríamos com os barulhos vindos de lá.
— Inventando moda a esta hora, Bastião?
— Deus ajuda quem cedo madruga!
Há anos não rezava um Pai-Nosso, mas invocava Deus quando reclamávamos de algo. Quem ousaria contrariá-Lo? Apesar do pouco estudo, Bastião era engenhoso que só, justamente por ver a vida de um jeito simples.
Eu era atraído pelo rancho quando pequeno como todas as crianças procuram os lugares mais perigosos para brincar. Meu avô então inventava brinquedos para mim e até me dava umas tarefas menores, desde que aquilo ficasse em segredo entre nós. Era a maneira dele de se conectar comigo. Nessas ocasiões, sempre que eu me atrapalhava, ele lançava o bordão: não se complica.
Com o passar do tempo, descobri novas formas de ficar ansioso. Lá pela terceira ou quarta série aprendi que poderia me preocupar por mim e por outra pessoa ao mesmo tempo, multiplicando meus receios: foi meu primeiro amor. Bastião ouviu atentamente meu relato apaixonado e, no fim, perguntou:
— Já contou isso pra ela?
A mera possibilidade jamais me havia ocorrido. Pois conte pra ela e não se complica. Contei, de fato. Ela também me contou que gostava de outro. Foi minha primeira decepção amorosa, mas me senti mais leve sofrendo pelo “não” que especulando “talvez sim, talvez não”.
O remédio para tudo era fazer. Aí estava toda a filosofia dele. Fazer algo era sempre melhor que nada, mesmo que desse errado. Agora você sabe um jeito a menos de errar.
O problema é que há muitas formas de errar. Bastião era fraco por mulheres e se meteu em algumas encrencas por causa disso. Quando saía com sua camisa de bolero, a corrente de ouro no pescoço e meio litro de água de colônia pelo corpo, era perigo iminente. Paquerou mulher casada em todos os bailes da cidade. Certa vez, até apareceu com um roxo no canto do olho.
— Era tão bonita que não reparei na aliança.
III
De repente, um susto! Bastião desmaiou e foi levado às pressas ao hospital. Dois dias depois já estava em casa, com a promessa de não fazer mais esforço. Foi só uma fraqueza boba, ele garantiu.
O silêncio tomou conta dos fundos do terreno. Pela primeira vez na vida, pude dormir até mais tarde nos finais de semana. Foi ótimo até o dia que levei um pedaço de empadão na casa do avô e o encontrei sentado na frente do televisor. Ele olhava para o nada, nem som o aparelho tinha. Perguntei como ele estava.
— Daquele jeito... O doutor mandou descansar e tomar umas bagas aí. Não tem muito mais o que fazer, só levar essa vida inútil.
Olhamos a televisão em silêncio. Não soube o que comentar. Foi nesse momento que percebi: ele não estaria aqui para sempre. Aquilo me paralisou na hora.
Vô, não sou forte o bastante para carregar você.
Até então, ele tinha sido uma certeza na minha vida, na vida do bairro. Bastião aprendeu cedo que o trabalho era o único caminho possível para ter algum conforto. E trabalhou até que toda a família também estivesse confortável. Depois, continuou trabalhando por força de hábito. Nunca se negou a fazer um móvel para um vizinho, mesmo aposentado, ou ajudar na obra de um recém-casado. Cobrava apenas o suficiente para que o outro não se sentisse humilhado pelo favor. Se lhe contassem que vinha bebê a caminho, trocava um berço feito à mão por uma galinhada de panela, que ainda dividia entre as filhas. Todo o bairro o queria bem. Nos aniversários de Bastião, cada um trazia algo de comer, beber ou tocar. Os bicheiros mandavam carne e uísque dos bons. Vinham até os entregadores da loja de materiais de construção, que todo mês descarregavam no terreno a matéria-prima da alegria de meu avô.
Se tem algo que aprendi com ele é que só podia viver em movimento. No sábado seguinte, acordei com o despertador às seis da manhã, tomei um café às pressas e abri o rancho nos fundos do quintal. Peguei um tanto de tábuas e comecei a serrá-las a torto e a direito com alarde. Dali a pouco Bastião apareceu na porta:
— O que você tá fazendo?
— Uma prateleira de livros.
— Prateleira, é?
— É, de livros. Pra colocar na cabeceira da cama. O vô acha que isso aqui tá bom de madeira?
— Isso aí é muito, guri. Não se complica, uma cabeceira tem oitenta e oito centímetros. Deixa eu ver…
Juntos medimos, serramos, pregamos. Bastião instalou a prateleira na parede contra os protestos de minha mãe. Por mais dois anos, ninguém ali dormiu até tarde num sábado ou domingo de manhã.
IV
Tudo isso me veio à lembrança enquanto cinco homens se alinhavam ao lado do caixão. O sexto ainda estava para nascer.
Eu tremia. Atrás de mim, imaginei a multidão à espera. Justo nessa hora, quando mais precisava da voz dele me dizendo para não me complicar, tudo parecia tão mais complicado. Queria ouvi-lo mais uma vez. Com o silêncio, quanto dele se perdia em mim? Quanto de mim também se perdia?
A mãe tocou meu ombro, me virei para ela e trocamos uma lágrima de confidência. Ela me conhecia bem, sabia cada sentimento meu. Mas, naquele momento, não olhava quem eu era, e sim quem eu poderia ser, quem precisava ser. Vi a falta estampada nela, minha mãe sem pai. Então entendi. Nessa troca de olhares conheci melhor meu avô: diante da dúvida e do receio que lhe traziam, se mover era a forma de ele responder que tudo ficaria bem.
Dei o primeiro passo sem mais pensar. E outro. E outro. E outro. Agora seis homens levavam Bastião para a nova casa, com a multidão acompanhando em coro de despedida.
Sim, vô, eu carregarei você. Sim, mãe, eu serei seu pai.
Enquanto escrevia esse conto, pensava no tema “nomes de avós”. Os meus se chamavam Longino, Soloah, Kurt e Hildegard. Se uma criança recebesse qualquer um desses nomes em 2024, sairia da maternidade direto para a fila do INSS pedir a aposentadoria.
Por sinal, como se chamam os seus?
playlícia
Falando em nomes, apresento minha nova playlist: Os melhores nomes da música brasileira. Não são necessariamente os maiores, mas são alguns dos mais curiosos.
Por exemplo, você já conhece Bule Bule? Tony Bizarro? Marisa Gata Mansa? Batatinha? São todos artistas que se levavam a sério, mas sempre sorrio ao pensar neles.
Nessa playlist reuni outros casos semelhantes. Se lembrar de alguém mais, aceito dicas.
vi por aí
Este texto comovente da
sobre animais.A lista dos 25 melhores discos brasileiros do primeiro semestre, divulgada pelo
.Este Ted Talk questionando por que tantos homens incompetentes tornam-se líderes.
Os poemas da Nadja Rodrigues de Oliveira. Tenho lido “Povoemas e outras nascentes” que a autora lançou há pouco e gostei da sensação à la Pizarnik que me causa.
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
Acreditei em cada palavra.
Essa newsletter teve um gostinho diferente, pois sou neta de um Sebastião! Meus avós maternos eram ele (Bastião pra todos, vovô Tião pros netos) e Leoni (vovó Lone, quem me ensinou a ler e escrever); os paternos eram José (vovô Zé) e Arlete (vovó Lete). Nenhum nome tão incomum pra uma neta Aione!
Sempre bom te ler!