leia isto para lembrar
Tudo vai ficar bem, prometo. Você deve estar assustada agora, talvez sem saber quem é ou onde se encontra. Mas está protegida, isso garanto.
Seu nome é Ester Bezerra Menezes. Nasceu em 12 de novembro de 1942. Há um calendário com a data de hoje ao lado da cama para saber sua idade. Quando você tinha 72 anos recebeu o diagnóstico de Alzheimer. Isso quer dizer que em manhãs como esta tem dificuldade de lembrar-se.
Você está em casa. Na mesa de cabeceira há um sino. Basta tocá-lo e uma cuidadora virá ajudá-la. Sempre há alguém perto para ajudá-la.
O Menezes de seu nome vem de mim. Eu sou Lauro Menezes, seu marido. Há uma aliança em seu dedo com nossos nomes e a data 13/07/1965, o dia de nosso casamento. Éramos tão novos quando juramos para todo o sempre. Contudo, permanecemos fiéis à jura.
Depois de tanto tempo juntos, não há como dividir uma história só sua ou só minha. O que sou e o que é na verdade é a história do que somos. Espero que se lembre disso, do nosso amor.
Nós nos conhecemos no Conservatório de Música. Você era a professora de piano de minha irmã mais nova, Bianca. Sim, você tocou piano sua vida inteira. Há um na sala. Mesmo quando não se lembrava do meu nome, ainda sabia tocá-lo.
Eu levava minha irmãzinha três vezes por semana ao Conservatório. Em algumas ocasiões, acompanhava toda a lição para estar perto de você. Nunca tive jeito para as artes — já cursava engenharia nessa época —, mas sempre admirei sua delicadeza para tocar e, sobretudo, sua delicadeza ao lidar com todos, alunos ou não.
Certo dia, quando perguntei por que aceitou ser minha namorada, disse-me que meu afeto era diligente e essa era a forma mais pura de amor. Prometi desde o primeiro momento que cuidaria de você e fiz meu melhor para isso.
Casamos, construímos esta casa, tivemos dois filhos. O mais velho, Augusto, nasceu em 12 de janeiro de 1967. Ele vive em São Paulo com a esposa e três filhos, nossos netos. A caçula é Giulia, nascida em 20 de outubro de 1968. Ela mora perto e passará para ver como você está todos os dias entre 18h e 19h.
Quando eles ainda eram pequenos, em uma tarde tranquila de sábado, você olhou para mim e disse: Somos tão sortudos… Temos o dever de ser felizes.
É verdade. Tivemos tanta sorte por tudo que vivemos. Até nas brigas jamais duvidamos de que queríamos estar juntos por toda a vida.
***
Os primeiros sintomas do Alzheimer foram leves: esquecer um compromisso aqui, uma chave ali. Então, no dia que se esqueceu de meu nome, soube que era grave.
O tempo passou e as lacunas da memória ficaram cada vez maiores. Em um dia, não sabia meu nome; em outro, o que eu era para você.
Nessas horas eu sentia o peso de carregar apenas em mim o que havia de nós, mas você fez valer a pena. Você fez tudo valer a pena. E isso me levou a entender que, enquanto houver essa memória, ainda haveremos. Nem a doença nos abalou.
Mesmo que lhe escapasse da mente um tanto de si mesma, em cada instante eu via em você a mulher que sempre amei. Quando tinha dificuldade de se recordar de algo e eu a ajudava, jamais se frustrava ou se zangava. Apenas agradecia e sorria com doçura. Ou quando eu lhe contava uma história, embora não reconhecesse os nomes dos velhos conhecidos, você mantinha a moral inabalável para distinguir se agiam bem ou mal.
Ainda assim, eu sentia seu medo de se perder de si. Ao receber o diagnóstico, você me pediu para prometer mais uma vez que tudo ficaria bem. Eu só não imaginava que não estaria mais aqui para cuidá-la de perto.
***
Quando descobri meu câncer, já estava em estágio avançado. Passei meus últimos dias zelando para que você ficasse bem quando eu partisse. Organizei nossas finanças e bens, fui atrás de cuidadoras, deixei lembretes por toda a casa. Mas havia uma questão fundamental: deveria lembrá-la de mim ou evitar a tristeza de perder-me de novo e de novo?
Foi você quem disse para eu escrever estas palavras. Disse que preferia isso a não saber o que vivemos na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.
Então é hora de começar o dia. Toque o sino, você tem um compromisso com a felicidade. Tudo vai ficar bem. Continuarei olhando você.
Seu Lauro, 6 de outubro de 2019.
A ideia para essa história surgiu de uma questão: onde reside o amor? Nem nas palavras, nem na memória, mas na ação.
E você, como responderia?
playlícia
Novembro de 2022 foi um mês de grandes perdas para a música brasileira. Gal Costa e Erasmo Carlos, que compartilharam tantos sucessos, partiram com poucos dias de diferença.
Gal foi um estouro desde o começo. Seu primeiro disco solo, Gal Costa (1969), já é um dos melhores de sua carreira. Por outro lado, Erasmo passou muito tempo perseguindo a moda rock dos Estados Unidos e tudo que a Jovem Guarda conseguiu produzir foram cópias e letras ruins.
Foi em 1970, com o disco Erasmo Carlos e os Tremendões, que ele encontrou novos ares. É curioso que a primeira faixa seja Estou Dez Anos Atrasado. É também nessa obra que Erasmo canta Caetano em Saudosismo. Daí em diante, muitas composições de Caê alimentariam os álbuns de Erasmo e Roberto Carlos, enquanto a dupla comporia diversos sucessos para Gal, como Sua Estupidez. Sou fascinado por esse contato entre a Tropicália e a Jovem Guarda, a Bahia e o Rio.
Mais ainda, como artista, sou particularmente inspirado pela trajetória de Erasmo porque ele se tornou brilhante. Não o foi desde o começo. O Erasmo de A Pescaria (1965) está muito longe de Carlos, Erasmo (1971), a obra-prima dele. Essa possibilidade de virar a chave é o que me encanta. Todos podemos amadurecer abrindo nossos horizontes, tendo novos contatos mas, sobretudo, persistindo em criar.
Pela arte, Gal e Erasmo vivem na memória.
vi por aí
Sempre pesquiso para não falar muita merda aqui na Newslenta. Apenas uma quantidade razoável de merdas. Então, ao ler sobre a Doença de Alzheimer, encontrei uma pesquisa de Nina Strohminger e Shaun Nichols. Eles indicam que a percepção de identidade do outro é baseada, acima de tudo, na moralidade. Personalidade e memória viriam só depois. Isso me inspirou a escrever em Leia isto para lembrar o trecho em que Lauro fala que percebia a mesma Ester por ela manter o senso moral.
O Brasil está num processo de dissonância cognitiva coletiva, afirma o pesquisador e professor João Cezar de Castro Rocha em entrevista ao Estado de Minas. O texto é importante para entendermos esse problema que ainda precisaremos enfrentar por muito tempo. Segundo Rocha, o país levará pelo menos uma década para remediar a situação.
Dois textos sobre o atual estado das mídias sociais. No The Atlantic: “as redes sociais, antes rotas de possíveis contatos, tornaram-se supervias de conteúdos constantes”. Já a VICE aponta que, em lugar de redes de contatos, temos “um sem-fim de plataformas de transmissão” que substituem “a conversa polidirecional por algo essencialmente unidirecional”. Então, como lidar com a dissonância cognitiva coletiva quando não temos mais conversas, mas um modelo de criadores e audiência?
O passado é escrito no presente. Adoro cada notícia de um achado que pode reescrever a História. Curiosamente, por mais que eu tenha pesquisado sobre a Pré-História para escrever a edição A invenção que mudou o mundo, há pouco tempo não sabia do Parque Nacional Serra da Capivara. Ali está a maior quantidade de pinturas rupestres do mundo e indícios de ocupação humana há 50 mil anos. Quero visitar. Já foi para lá? Compartilhe sua experiência.
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
segunda feira, 11hr da manhã e eu chorando com esse texto curtinho e lindo. ai ai.
Que texto lindo, confesso que dei uma choradinha de leve aqui.