vestir a fantasia
Quando o sonho do Carnaval é mais verdadeiro que a realidade, qual é de fato a fantasia?
Toda manhã, Paulo vestia a fantasia de auxiliar de serviços gerais, atravessava a cidade espremido entre os outros passageiros da lotação e batia o ponto num shopping center da Barra da Tijuca ainda no primeiro horário para limpar a praça de alimentação.
Nunca atrasou, não faltou um dia sequer, mesmo quando doente, e assim haviam sido os últimos dez anos nesse emprego. Faltavam mais três anos para chegar aos 65 e à aposentadoria. Então, poderia fazer o que bem entendesse de seu tempo com um salário mínimo.
Todo dia, ele deixava o barraco sereno e via o sol nascer confinado na janela do ônibus. Mas era melhor dessa maneira. Ter os dias ocupados significava as noites livres e, uma noite por ano, Paulo também era livre da fantasia.
O tempo passava mais rápido do que Paulo, aos 62, era capaz de acompanhar, como a perna direita que ia ficando para trás, cada vez mais alheia ao resto do corpo no curso de todos esses anos correndo atrás das sobras de gente rica.
Depois de uma década ali, Paulo virou Paulo Preto quando contrataram um sujeito de mesmo nome e outra cor. Um trabalhava de manhã à tarde; o outro, da tarde à noite. Pouco se cruzavam no serviço, até porque o outro Paulo já estava testando a paciência.
Auxiliares iam e vinham, isso era comum. Primeiro, pediam atestados. Depois, pediam a conta. Paulo tinha hora certa para voltar a ser só Paulo porque aguentava tudo, o ano inteiro, para ser o Paulo do Carnaval. Ou, melhor, para ser Wegbaja do Dahomey, Ganga Zumba ou Cruz e Sousa, todos reis, príncipes, livres.
Ele e Castro, seu patrão, eram os únicos há mais tempo no shopping. Para Paulo, Castro era Seu Castro; para Castro, Paulo, quando não Paulo Preto, era seu homem de confiança. “Você é meu homem de confiança”, dizia com cerimônia, como se estivesse anunciando um aumento de salário, sempre que ordenava algo fora do combinado.
Dia após dia, Paulo engolia as migalhas da praça de alimentação. O difícil mesmo era voltar para casa, depois de horas e horas arrastando bandejas, e cadeiras, e carrinhos, e vassouras, e panos, e a si próprio. A cada subida, seu barraco parecia mais alto. Como cantava Lupicínio naquele velho samba, “subir o morro antes era brincadeira”, mas agora…
Suas pernas só se encontravam nos ensaios do barracão e no desfile. Paulo pensava melhor com os pés, sambava feito moleque. Assim, no meio de sua escola de samba, Paulo era mais Paulo e mais que Paulo. Logo, seria Xangô de vermelho e branco, Xangô de machado em punho na Avenida, Xangô para o êxtase de seu povo aclamando.
Kawó-Kabiesilé! Salve o Rei! Abriria o desfile da segunda, um bom agouro para quem vinha desfilando aos domingos nos últimos anos. Desfilaria dez em ponto: tudo estava escrito para ser campeão.
II
Faltava pouco. Em fevereiro, o sol escorria pelos poros desde cedo, queimava dobrado. Os dias pingavam no calendário, cada vez mais perto do Carnaval. Aí veio a notícia, já no domingo de véspera. Castro chegou dizendo: Paulo Preto, preciso que você cubra o Paulo no turno da noite amanhã e terça. A cidade tá cheia e o cara ainda mete um atestado.
— Doente de novo, Seu Castro?
— Pois é, já foi Covid, conjuntivite e agora dengue. Ou é bichado, ou é malandro. De todo jeito, comigo não se cria. Aí preciso de você.
— Mas, Seu Castro, com todo o respeito, o turno da noite não vai até dez?
— E o que é que tem?
— Seu Castro, veja bem, amanhã minha escola abre o desfile e o senhor sabe como isso é importante pra mim. Não tem condição de ficar na função até as dez da noite nesta segunda.
— O negócio é segunda ou nada. Pô, você é meu homem de confiança!
— É que não tem condição mesmo, Seu Castro. É minha vida.
— Vem cá, sua vida é o Carnaval ou o emprego? Aí é que tá. Pense bem.
Como o oxê de Xangô, a razão de Paulo poderia cortar para os dois lados dessa questão, mas apenas um gume por vez. Se escolhesse o desfile, quem contrataria um velho de 62 anos? Se escolhesse o trabalho, quem seria ele?
Paulo arrastou-se nessa dúvida a manhã inteira de segunda. Sentiu-se ainda mais gasto, mas sua visão estava clara como nunca. Viu a própria invisibilidade enquanto passava de mesa em mesa. Quem não pode sentar não tem o direito de ser visto.
Então, Xangô chamou. Xangô é justiça. Até o dia virar, toda a gente abriria os olhos.
III
Aquela manhã foi a primeira vez que o coração do homem se descompassou. Dizem que o peito tropeça quando a cabeça pesa, só que Paulo sabia melhor: era o fogo e o raio de Xangô atravessando seu corpo cansado.
A transformação havia começado. Nem por isso desfazer-se da fantasia era menos penoso. Era tão mais fácil despir-se dela com a certeza de que estaria ali, de novo, na manhã seguinte. Quem pode arcar com o preço de ser quem se é por mais que um dia? Paulo sabia que ele não.
Mas quem saiu às quatro em ponto do shopping não era mais um mero trabalhador. Era o rei de Oió que tomava seu lugar. Sua grandeza transbordava em frenesi, riso e lágrima no meio da lotação. O que ainda restava de Paulo segurava o peito com medo de que rebentasse ante aquela força remoçada — a cada batida do coração, um trovão ecoava em seus ouvidos.
Voltou para casa apenas a tempo de pôr suas vestes reais e rumar para a Avenida. Não comeu nem bebeu. O povo o aguardava. Logo o puseram em seu trono, à frente da comitiva que passaria pela Sapucaí.
Às dez horas da noite começou o desfile. A multidão explodiu de alegria com a entrada de Xangô, enquanto Xangô explodia dentro de Paulo. O orixá fez a Avenida pegar fogo e, de cada câmera apontada, faiscar raios para abrilhantar a festa.
O cortejo vinha a meio do caminho e o coração de Paulo era uma bateria em si mesmo, batendo cada vez mais forte, mais rápido.
Fosse aquele corpo uns anos mais moço, passaria todo o desfile na mais perfeita evolução. Mas, já nos últimos metros, a percussão que trazia no peito parou. O silêncio foi acompanhado de uma dor pungente. Xangô se despedia de Paulo, deixando-o sem força própria.
A multidão virou um borrão ante os olhos do homem, que mal ouvia o canto ao redor. O rei saía e o que ficava em seu lugar? Um pobre desempregado. No dia seguinte, as manchetes diriam “Homem morre durante o desfile”, não restasse ainda um pouco de justiça correndo nas veias de Paulo. Xangô não deixaria de fora da festa quem deu tudo por ela.
A bateria voltou a tocar, a vida entrou no compasso e o samba prosseguiu. Paulo foi com a escola até o fim, fiel como sempre, cansado como nunca. Ainda na dispersão, tirou as vestes de Xangô, pensando na cama que o esperava e sabendo que de manhã teria de procurar uma fantasia para vestir, qualquer que fosse.
O Carnaval pode ser muitas coisas para muita gente. E, para você, o que significa?
playlícia
O texto desta edição foi inspirado pela música Fantasias, composta por Aldir Blanc e João Bosco, na belíssima interpretação de Simone.
Há algum tempo venho colecionando canções que falam sobre o Carnaval, ou que contam histórias desse período do ano. O resultado é a playlist Sonhos de Carnaval, que guardei especialmente para este momento. Espero que goste!
prazeres do samba
Heitor dos Prazeres (1898-1966) é um dos maiores nomes do samba. Aqui está uma breve biografia, caso ainda não tenha ouvido falar dele. Mas Heitor também é uma figura interessante porque representou o gênero musical na pintura e são dele as obras que ilustram esta edição. Outras artes podem ser vistas no link.
fantasia
Ainda no tema de fantasias, um poema meu de 2021:
no apagar das luzes no eco dos aplausos o ator contempla surpreso a epifânica certeza — por trás dum papel famoso ele revela sua natureza mais que na fantasia de encarnar a si mesmo
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
que lindo, christian!! parabéns <3
Que beleza!