segunda-feira
O que aconteceu com meu vizinho? Aquela mudança na segunda de manhã resolvia a questão do apartamento 403, mas não explicava o desaparecimento do antigo morador. Sumir assim e deixar tudo para trás era, no mínimo, estranho.
Fernando, mais conhecido pelo apelido Bolo, alugava o número ao lado e vivia com uma pinscher que só sabia latir nos últimos tempos. Ele a chamava de Cereja, achando-se o próprio Washington Olivetto por essa ideia.
Fui eu que avisei a síndica do sumiço. Primeiro, joguei um papo no porteiro para ver se Bolo tinha se mudado, já que o apartamento ao lado estava quieto. Disse que não. Dali uns dias, comentou comigo: Sabe que nunca mais vi o senhor Fernando entrar ou sair do prédio?
Passaram-se algumas semanas e comecei a achar que era caso de polícia. Perguntei à síndica se Bolo tinha viajado. Respondeu que não sabia, mas achava estranho as contas atrasarem. Não era do feitio dele. Tentou contato por vários dias. Nada.
Então, vieram os bombeiros. A gente esperava que, ao arrombarem a porta, um cheiro cadavérico tomaria conta do corredor. No máximo, havia umas comidas podres no 403. Nem sinal de Bolo e Cereja.
Não vou fingir saudades. Os latidos noite e dia me tiravam do sério. Por outro lado, a curiosidade também é bicho brabo.
Ainda foram mais três meses até alguém recolher a mobília. Menos de uma semana depois, já tinha placa da imobiliária na janela. Na segunda de manhã, a caminho da academia na esquina do prédio, vi o movimento de mudança.
Ao voltar do treino, encontrei o novo vizinho carregando uma caixa no corredor. Ofereci ajuda.
— Esta é a última. Obrigado!
Quando abaixou um pouco a caixa para me responder, observei melhor o rosto dele. Pareceu familiar. Digo, não havia nada peculiar. Era exatamente o que você pensaria de um homem branco perto dos quarenta anos. Mas eu já tinha visto aquele rosto em particular.
Tentei descobrir:
— Prazer, eu sou o Eduardo. Por acaso, você também trabalha com publicidade?
— Prazer. Sou Bruno. Não, nada tão divertido. Contabilidade.
— É que você me pareceu familiar…
— Acontece.
— Bom, se tiver lixo, aproveite que hoje é o dia do caminhão.
— Obrigado!
Bruno pediu licença e foi cuidar da mudança. Taí um sujeito quieto, pensei. Logo fui com a cara dele.
terça-feira
Na terça, precisei ir ao urologista. Estava com um vermelhão nas bolas.
Marquei uma consulta para aquela tarde com o primeiro médico com agenda disponível. Escapei da agência com uma desculpa menos embaraçosa e fui à clínica.
Quando a porta do consultório abriu, quem veio chamar meu nome? Ninguém menos que Bruno, meu novo vizinho.
— Bruno?!
— Não, sou o doutor Lucas. Vamos lá?
Aquilo era muito esquisito. O sujeito era igual ao Bruno, com a mesma voz e tudo. Será que disfarçou sobre trabalhar com pintos? Então, por que mentir também o nome? Não que mostrar meu saco para o vizinho fosse a situação mais agradável do mundo, mas a mentira era ainda mais desconfortável.
— Olha, não vou falar para ninguém disso, pode ficar tranquilo.
— Não estou entendendo.
— No prédio, você é Bruno. Combinado.
— Lucas — e apontou para o diploma na parede em que estava, de fato, o nome Lucas.
— Tem irmão gêmeo?
— Não.
Ficamos em silêncio enquanto ele apalpava minhas bolas.
— Você tem o costume de raspar a região do escroto com barbeador? — perguntou ao se afastar.
— Bom, sim…
— Vou lhe recomendar uma pomada para aliviar a irritação cutânea. E experimente usar lâminas femininas, como a Gillette Venus. Elas são mais delicadas para essa área.
Peguei a receita, envergonhado por toda aquela situação. Quase me esqueci de pedir o atestado para justificar a saída da agência. Já estava saindo da clínica quando voltei atrás. Parei na porta do consultório para ouvir se havia outro paciente, mas tudo que entendi foi a voz do médico:
— Pois é, precisamos ficar de olho nele. Espere, acho que tem alguém na porta.
Eu que não ia passar outra vergonha. Saí dali o mais rápido possível.
quarta-feira
No dia seguinte, meu foco estava na apresentação que faríamos a um potencial cliente. Seria uma conta grande. Fiquei encarregado da parte de mídia e só conseguia pensar em budget, target e CPM. Nem fui treinar de manhã. Apenas passei pomada nas bolas e encarei uma viagem de carro de quatro horas com outras três pessoas da agência até a cidade da empresa que íamos visitar.
Paramos num Graal da estrada para o almoço. Na saída, reparei num caminhoneiro que também tinha acabado de comer. Pedi para passarmos devagar ao lado do caminhão; queria tirar uma foto do sujeito.
— Vocês não o acham parecido com alguém?
Camila, que é nossa diretora criativa, respondeu somente:
— Sei lá, se balançar qualquer árvore, cai cinco caras iguais. Todos nessa idade estão malhando ou deixando a barba crescer para disfarçar a calvície.
Fiquei o resto do trajeto em silêncio, tentando me concentrar na apresentação e esconder minhas entradas.
Felizmente, deu tudo certo. Tanto que nos convidaram para fazer um tour pelas instalações. Enquanto a responsável nos contava os detalhes da empresa, outro executivo passou pelo nosso grupo. Gelei quando o reconheci. Cutuquei Camila:
— Ó o caminhoneiro!
Ela me encarou como se estivesse maluco. Será?
quinta-feira
Nada como um treino até a falha para acalmar a mente. Tomado de endorfina, resolvi dar a volta na quadra, em vez de subir direto. Mas, na rua de trás, que susto! Um cachorro veio latindo atrás de mim. Nem precisei olhar para saber — era Cereja. Surrada, usava a mesma gargantilha rosa, agora sobrando em seu pescoço puro osso.
Acho que também me reconheceu. Latiu mais doce. Até me deixou pegá-la no colo. Passei num pet shop para comprar ração e a trouxe para o apartamento.
Bolo nunca abandonaria a cachorra desse jeito. Aconteceu algo grave e eu precisava descobrir o que era.
sexta-feira
A sexta foi de comemoração na agência. Conquistamos a conta e teríamos happy hour no fim do expediente.
Para mim, o clima foi o oposto disso. Passei a manhã disfarçando ligações para hospitais e delegacias tentando encontrar o paradeiro de Bolo. Ao meio-dia, visitei o IML. Vi dois defuntos, mas nenhum deles era meu antigo vizinho.
Às 18 horas, esperei todo mundo sair e fiquei um pouco mais no escritório, fingindo ainda ter trabalho. Na verdade, imprimi cópias de um cartaz com a foto de Bolo que peguei da internet. Escrevi em letras garrafais: DESAPARECIDO.
Não havia mais o que fazer naquele momento nem podia me atrasar muito. Mesmo não bebendo, o happy hour é importante para fazer networking e puxar o saco dos sócios. Mas, assim que botei o pé no bar, vi aquele rosto maldito, agora servindo as mesas, todo sorridente.
Como não percebiam aquilo? Então tive o insight: esse era o disfarce perfeito, a definição do cara padrão. Ninguém mais suspeitaria a presença dele porque já era esperada em qualquer atividade e qualquer lugar.
Girei nos calcanhares e fui para o apartamento, querendo comer meu Hot Pocket proteico, jogar um videogame e esquecer aquele dia. Logo que entrei, perdi o apetite. Esqueci que cachorros precisam passear e Cereja tinha mijado por tudo.
— Bom, vamos passear.
Ela só faltou falar de alegria. Na volta, pegamos o elevador com Bruno para subir. A essa altura, eu já estava me lixando para quem ele era ou o que era. Mas Cereja virou o Cão! Rosnava para Bruno, queria pular nele com uma violência que ela nunca tinha demonstrado. Precisei segurá-la com força para não o morder.
Foi difícil fazer Cereja sossegar sabendo que Bruno estava no apartamento ao lado. Quando muito, devo ter dormido quatro horas essa noite.
sábado
Pela manhã, dei um gás extra nos sets da academia.
À tarde, levei a cachorra comigo para colar os cartazes à procura de Bolo. Queria gastar a energia dela para ambos conseguirmos dormir um pouco.
No fim do dia, estávamos prontos para deitar mais cedo. E fomos. Mas, no meio da noite, acordei com Cereja latindo desesperadamente na sala. No vão entre a porta e o chão, as luzes do corredor sugeriam duas figuras.
— Essa cachorra sempre latindo.
— Precisamos dar um jeito em definitivo — disseram em retirada.
O som era como a mesma voz vinda de duas bocas diferentes.
Não dormi o resto da noite. Sentei no sofá, olhando a porta, com Cereja protegida no meu colo.
domingo
No domingo, jurei não perder a cachorra de vista — se eu fosse ao banheiro, ela iria comigo e vice-versa.
Curiosamente, foi um dia calmo até aí. Não havia sinal de agitação no corredor e acreditei que tudo poderia ser coisa da minha cabeça. Burnout, talvez. Na segunda, teria de marcar uma consulta.
A noite estava um tédio que só. Era meu cheat day, então pedi uma pizza com Coca Zero. Levou quase uma hora para chegar e, pior, o entregador não quis subir. Esse foi o único momento em que deixei Cereja sozinha, porque não ia conseguir trazer a comida com a cachorra no colo. Erro meu, admito.
Quando voltei, a porta do apartamento estava entreaberta. Será que na pressa de descer não a fechei direito? Meu instinto foi o de procurar a pinscher como se tivesse sido minha desde sempre. Olhei na sala, na cozinha, no quarto, no banheiro e nada da cachorra.
Subi e desci, andar por andar, chamando Cereja. Cheguei até a portaria e o porteiro também não a tinha visto. Pedi pelas câmeras, mas justo agora estavam com problema.
— Uma chiadeira danada — mostrou no monitor.
Bruno veio da rua enquanto eu surtava na frente do porteiro.
— Como podem roubar a mesma cachorra duas vezes no mesmo prédio? — gritei.
— Você quer ajuda para procurá-la? Podemos colar cartazes pelo bairro — Bruno sugeriu, mas li perfeitamente nas entrelinhas.
— Isso é muita gentileza do senhor — comentou o porteiro, alheio à ameaça velada.
— Não precisa — saí esbravejando e peguei as escadas para não ficar sozinho com Bruno no elevador. Depois, mal toquei na pizza fria de tanta raiva.
segunda-feira
Fui trabalhar contra a vontade. Mas a preocupação com Cereja logo deu lugar a outra, mais íntima. Pela manhã, a Selma do RH estava de conversa com alguém que reconheci mesmo de costas. Da minha mesa tirei uma foto dos dois, para guardar com as outras evidências.
Que nome ele daria agora? Mateus, Renato, Abel, Diego? Tanto faz.
A fofoca corria pela agência.
— Vão contratar? — alguém perguntou.
— Vão. Parece que é mídia — outro respondeu.
— Mas já tem eu de mídia — comentei ingenuamente.
Então a ficha caiu com um silêncio constrangedor. Seria muito injusto me mandarem embora depois de ter ajudado a conquistar a conta nova. Está bem que precisei sair um dia antes da apresentação. Tinha atestado, ora! Não, não tinha… Está bem que passei a sexta fora da minha mesa e faltei ao happy hour. Isso não apaga meu trabalho até aí.
Ninguém veio falar comigo a respeito e eu que não iria atrás. O burnout teria de esperar. Apenas tentei focar no trabalho com a esperança de mantê-lo.
À noite, estava tão preocupado que quase me esqueci de levar o lixo. Desci às pressas e acabei jogando as chaves na lixeira do prédio. Lá fui eu botar a cabeça no meio da imundície, revirando os sacos, tateando no escuro. Enfim, encontrei as chaves. E algo mais: a gargantilha rosa de Cereja.
De repente, tudo fez sentido. Os latidos meses atrás, o desaparecimento, o ataque a Bruno no elevador, o novo sumiço…
Se eu esperasse um pouco mais, teria o mesmo destino de Bolo. Precisava escapar dali. Então, fiz minha mala com as roupas que vi pela frente, peguei meu passaporte e corri para o aeroporto.
Não posso lhe dizer para onde estou indo, pois tenho medo de que Bruno, Lucas ou qualquer outro deles leia este e-mail.
Escrevo do avião, sem sinal e sem saber se a mensagem chegará, mas vale a tentativa. Mesmo aqui, a 10 mil pés de altura, minha demora em agir pode ter me custado caro. Quando acreditei ter escapado, ouço o piloto do avião no alto-falante:
— Boa noite, prezados passageiros. Aqui é seu piloto João Mário…
A voz me causa um arrepio imediato. Torço para estar enganado, ou não sei o que será de mim. Que minha história sirva de lição. Se encontrar esse homem, fuja!
Então, já viu esse homem em algum lugar? Conte nos comentários. Também estou curioso para saber o que você acha que a história significa.
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* Créditos das imagens: edição em foto de Drazen Zigic; fotos de Drazen Zigic, stefamerpik e aleksandarlittlewolf via Freepik.
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Um abraço do Chris
Você pisca e surge um homem hetero padrão pra ocupar o seu lugar ou sua mente.
A Cereja do Bolo 😭