pedra da tristeza
Toda lenda começa assim, com um pouco de fato e muito de feito depois, porque bem se sabe que a memória é imperfeita. Acontece que tudo se engrandece no caminho, isso é da coisa humana.
A bem da verdade, há relatos de um Padre Zézo nas proximidades de Quirapuxim, no sertão da Bahia, lá pelos idos de mil novecentos e tantos. No meio das andanças, o padre costumava subir o pequeno monte da região, que se ergue como uma verruga no solo árido, com módicos doze metros de altura, sem tirar nem pôr.
Sobre o topo do Monte Zézo, como ficou conhecida a elevação, pisa-se um chão plano. Parece mesmo coisa construída, mas não. Mais curiosa ainda é a pedra: uma pedra do tamanho de uma mesa, muito que lisa.
Podemos imaginar que o padre, chegando ali, encontrou um altar natural para estar mais perto de Deus.
Então, por que a chamam Pedra da Tristeza?
Dizem — frise-se — que Padre Zézo tocou na pedra e subitamente sentiu toda tristeza escapulir-se de si. O efeito repetiu-se uma e outra vez. Para a surpresa do santo homem, quem o acompanhava presenciava idêntico milagre.
A fama da peculiar formação geográfica correu o sertão, enquanto os tristes de todo canto corriam para lá. Assim sucedeu a notoriedade da Pedra da Tristeza.
No início do século vinte e um, a coisa toda ganhou tal rumo que a economia de Quirapuxim era sustentada apenas por romeiros.
Formavam-se filas no sopé do monte, cada qual com sua penúria. Lá em cima, a cena era sempre a mesma: a pessoa subia sozinha, tocava a pedra, chorava de se acabar a tristeza e saía como se jamais tivesse sofrido.
Quase que me esqueço! Descobriu-se, não se sabe como, que a pedra não comportava mais de um aflito ao mesmo tempo.
Fizeram testes de todo tipo na pedra. Vieram os universitários e os místicos e os universitários místicos. Coletaram amostras, olharam no microscópio, acenderam incensos e, no fim, todos aceitaram o mistério.
A pedra funcionava e isso bastava saber.
De volta ao sopé do monte, os peregrinos confidenciavam entre si as aflições que os traziam a Quirapuxim. Isso lhes permitia estimar a velocidade da fila. Os cornos eram os mais rápidos a curar, enquanto as mães que perderam seus filhos poderiam ficar lá em cima toda uma tarde.
Mas a pedra era democrática. Qualquer que fosse o peso que até lá carregasse, o cidadão saía leve, leve.
Essa era a Quirapuxim daquela época.
Dizem que o homem misterioso chegou sem dar notícia de sua mágoa. Passou pelo sertão baiano sem uma só palavra e tudo ali mudou.
Cada relato lhe dá uma fisionomia diferente. Para uns, era Jesus-Tiradentes. Para outros, era um Rasputin caboclo.
Na vez do homem, dentro em pouco, finalmente ouviram-no. Nada que conste no dicionário, não. Um soluçar pesado, brotando do fundo poço da alma. Todos os demais calaram-se, em respeito àquela tristeza artesiana.
Veio a noite e as mãos do homem permaneciam sobre a pedra, ele ajoelhado no chão duro, sem nada que lhe detivesse o pranto.
Na manhã seguinte, ouviram ainda os soluços do sujeito. A fila aumentou ao longo do dia e logo circulou à boca miúda que ninguém, desde os tempos de Padre Zézo, molhara tanto a pedra com suas lágrimas.
Passou aquele dia e outro e outro. A multidão ora se aglomerava na única praça de Quirapuxim. Só deixaram um moleque de vigia no homem, para avisar o povo quando cedesse a vez.
A primeira reação, naturalmente, foi de revolta. Muitos vieram de longe para dar com uma pedra ocupada. Depois, tiveram espanto. Como pode alguém chorar por tantos dias seguidos? Então, a curiosidade. Que tristeza seria capaz disso? Por fim, a pena. Fosse qual fosse, ninguém merecia carregar tamanha cruz.
Deixaram-no quieto, embora ainda chorasse. Apenas o moleque levava de quando em vez alguma comida e bebida, que ficava no monte intocada.
Passou-se uma semana. Aos poucos, a persistente tristeza do homem teve um estranho efeito terapêutico sobre a multidão. Diante de tamanha lamentação, qualquer outro mal apequenava-se a ponto de desaparecer. Muita gente ali até já pensava mais nas dores do homem que nas suas próprias.
Os romeiros foram-se indo sem mais esperar pelo milagre. Nenhuma outra tristeza parecia digna da pedra. Mas partiram com a força recém-encontrada em si.
Foi somente no décimo quinto dia que o homem desceu do monte, sem dar palavra e sem mais chorar. Só o moleque viu isso, porque não se fazia mais fila, não havia multidão.
Como a fama veio, foi-se. Virou história, virou estória, até cair no esquecimento. Mas, quando esquecerem também o homem, vão procurar novamente o milagre.
Sem o interesse pela pedra e o sustento dos peregrinos, Quirapuxim perdeu-se com o tempo. Os poucos residentes debandaram. Ninguém volta lá.
Neste mesmo ano em que lhes escrevo, aposto como nenhum de vocês sabia da existência da Pedra da Tristeza ou de Quirapuxim. Estas palavras são para preservá-las.
Sabendo tudo isso, é inevitável perguntar-se agora: que tamanha tristeza enterrou o monte?
E você, o que levaria à Pedra da Tristeza?
(Obs.: As imagens que ilustram o conto acima foram criadas com inteligência artificial pelos aplicativos DALL-E 2 e Stable Diffusion.)
playlícia
O preço do feijão não cabe no poema, escreveu Ferreira Gullar, mas cabe num samba.
Tenho ouvido muito esse gênero que é a exegese da experiência brasileira. Ouvi desde o primeiro samba gravado, em 1916, até a produção atual.
Uma coisa é perceptível nessa história. Principalmente até a década de 1970, cantava-se de tudo. A comida, as cidades, a história do povo, a desigualdade social, a raça, a violência, o futebol, a religião e, claro, a própria música.
Então, o que cabe num samba?
O preço do feijão, claro: Saco de Feijão (Beth Carvalho)
Ter o nome sujo na praça: SPC (Zeca Pagodinho)
Pagar a faculdade: O Pequeno Burguês (Martinho da Vila)
Ser trouxa: Samba do Trouxa (Miltinho)
Fofocar: Fofoca no Morro (Jamelão)
Parentes folgados: Ê Parente (Eliana Pittman)
Político em campanha: Candidato Caô Caô (Bezerra da Silva)
Subir o morro depois de velho: Meu barraco (Lupicínio Rodrigues)
Carlos Drummond de Andrade: Fazendeiro do Ar (Ruy Maurity)
O rock: Nada de Rock Rock (Heitor dos Prazeres)
Tem muito mais! Reuni 55 faixas que refletem essa diversidade na playlist Tudo cabe num samba. Espero que goste!
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
A perda do amor grande