ossos do ofício
Você promete mudar os detalhes quando for publicar esta história? Trocar os nomes e tudo? Tenho medo de que alguém me reconheça e isso acabaria com minha carreira.
Promete?
Tá bom… Por onde começo?
Meu nome é Ricardo, sou ortopedista e acho que tudo começou ainda na faculdade. Ou talvez antes, com meu pai.
Ele também é ortopedista e sempre deixou muito claro o desejo de que eu seguisse o mesmo caminho. É o tipo de cara durão que não aceita ser contrariado, sabe? Durão e retrógrado, para piorar.
Então, quando entendi que sou gay, isso lá no Ensino Médio, decidi evitar outro desgosto para ele e fazer ortopedia, como esperava de mim.
As piadas começaram logo nas primeiras aulas sobre o assunto. Sabe? Tenho raiva até de falar… “Ossos do ofício” e coisa e tal. Na primeira vez, ri por educação. Na décima, já não suportava mais esse maldito trocadilho. E agora, depois de ouvi-lo milhares de vezes, só quero matar alguém.
Tinha a esperança de que na especialização isso desaparecesse. Acreditava que as pessoas cansariam disso em algum momento. Mas a esperança virou pesadelo, aquilo ainda me perseguia porque estava cercado por viciados em trocadilho. Para muita gente, isso é igual a crack.
Passei os próximos anos tentando fugir das três palavras infernais. Comecei a trabalhar com meu pai e, no tempo livre, evitava falar da profissão. Então procurei atividades que não precisasse conversar: ioga, xadrez, pantomima… Mas descobri que até com mímica é possível fazer trocadilhos.
Se fui atrás de terapia? Claro que fui! A única sessão terminou antes mesmo de começar quando a terapeuta chegou atrasada e disse:
— Desculpe o atraso. Pacientes… você sabe como são. Ossos do ofício…
Isso complicou demais minha vida. Tive muita dificuldade de me envolver com outros caras porque, mais cedo ou mais tarde, eles me dariam nos nervos. Foi assim até encontrar o Bruno.
***
Conheci o Bruno num jantar na casa de amigos em comum. Durante toda a noite, ele só emitiu os pensamentos mais superficiais que um ser humano é capaz de conceber. As opiniões dele se limitavam a “sim” e “não” ou “foda”, que ele dizia com uma expressão vazia, sem revelar se era foda de bom ou de ruim.
Para ser bem sincero, o Bruno era uma porta, uma anta desprovida de humor, não havia uma única fagulha de espírito naquele corpo. Foi justamente por isso que me apaixonei por ele. Era perfeito para mim.
Ainda assim, nossa felicidade juntos nunca foi um céu azul. Sempre pairava no horizonte aquela nuvem da dúvida: e se meu sapo encantado resolvesse, inesperadamente, desfazer a mágica com alguma graça?
Evitei isso o quanto pude. À noite, só víamos filmes de drama ou suspense. De dia, eu vivia mandando notícias sobre política para que ele nunca ficasse muito alegre. Até inventava brigas se o percebesse com o menor sinal de animação. Mas, para quem nunca soube o que é a luz, aquela penumbra estava ótima.
***
Existe um lugar especial no inferno para quem inventou o amigo secreto. Foi numa dessas que perdi meu Bruno, minha pedra bruta…
Alguém do nosso grupo sugeriu fazer um amigo secreto gay. Só valiam presentes de pink money e coisa e tal.
Ganhei um churros de piroca de uma pirocaria local, enquanto o Bruno… O Bruno ganhou um livro do David Sedaris! Pois eu sabia duas coisas sobre esse autor: primeiro, que era gay; segundo, que era engraçado.
Assim que voltamos para casa, tratei de esconder o livro atrás da máquina de lavar. Tinha certeza de que aquilo daria ideias ao Bruno e o Bruno que eu amava não podia ter ideias.
Naquela mesma semana, não sei como, ele achou o livro. Depois, tentei escondê-lo no armário do banheiro. Acredita que ele achou de novo?
Havia algo de edípico no meio de toda essa história. O trocadilho era meu destino e não podia escapar dele.
***
A tragédia anunciada aconteceu num domingo à noite. Eu estava me ajeitando para dormir e o Bruno já estava deitado, lendo Sedaris, quando se virou para mim e perguntou:
— Quer transar?
— Hoje não, Bru… Preciso acordar cedo para acompanhar um paciente.
— Bom, são ossos do…
Ele nem terminou de dizer. Não o deixei estragar a imagem que eu tinha do nosso amor. Coloquei um travesseiro sobre a cara dele e me despedi do meu querido Bruno.
Agora ele está por aí, em algum lugar no meio do mato, como a pedra pela qual me apaixonei.
Sabe, até que foi bom ter contado tudo isso para alguém. Eu me sinto mais tranquilo agora.
Então, como você vai chamar essa história?
Aproveitando o ensejo, você já leu David Sedaris? Lembro quando peguei Eu falar bonito um dia para bisbilhotar na livraria e em pouco tempo já estava me estrebuchando de rir.
Por sinal, qual foi o livro mais engraçado que leu?
playlícia 🔥
O conceito de Fodinha Triste™ não é tão relacionado à tristeza, e sim a uma disposição para a abertura emocional.
É quando você descobre no meio do vaivém que está gostando de estar com a pessoa, não apenas de foder com ela. Esse momento de epifania sexual então dilata os minutos e pede uma trilha sonora mais lenta, que pode ser confundida com melancólica.
Inclusive, para embalar a Fodinha Triste™ existe todo um gênero musical, misto de R&B e rock alternativo. Ouça o que quero dizer com isso na playlist Fodinha Triste™.
São quatro horas e meia de música, o tempo ideal para uma foda.
vi por aí
Neste mês, estive no Festival Literário de Itajaí para dois saraus: o Quinta Maldita e o Sarau da Tainha. É sempre uma boa oportunidade para conhecer talentos de perto e quem me surpreendeu desta vez foi Eduarda Vidal, cujos poemas fogem à expectativa. Na página da Patuá estão cinco textos dela para degustação.
Também gostei muito de uma fala de José Falero, autor porto-alegrense. Ele conta que imaginou-se conversando com uma entidade espiritual, anjo ou orixá, e perguntando se a escrita valeria a pena no futuro. A própria imaginação respondeu que não. Foi então que ele entendeu: escreveria apesar de tudo. Tive uma profunda identificação com isso e agora estou com vontade de ler Os Supridores, o primeiro romance dele.
Minha leitura atual é As Despedidas, de Carina Bacelar. Recomendo. No dia 30 deste mês, já na próxima terça-feira, ela vai participar de um evento virtual com outra autora de que gosto, Thaís Campolina. A inscrição para o Clube Cidade Solitária é gratuita.
Tár é um filme espetacular que faz uma das perguntas mais importantes do nosso tempo: como lidar com grandes obras produzidas por artistas monstruosos? Certamente não há uma única resposta, mas Claire Dederer tenta aprofundar a questão no livro Monsters: A Fan’s Dilemma. Esta matéria da Time (em inglês) despertou minha curiosidade para pesquisar mais sobre o assunto.
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
Como já vinque vc gosta de novos talentos vou te indicar um autor Thiago Martins
Ele tem dois livros publicados. Gostei bastante de ambos. Acho que vc pode gostar. Humor inteligente, com um toque de acidez.
Cada tempo tem a tragédia que merece e Pareidolia - ambos tem na Amazon :)