no céu tem wi-fi?
Tudo ia bem até que morri. Não sei bem como aconteceu. Estava atravessando a rua e ploft! De repente, vejo-me numa fila de pessoas sobre as nuvens.
No começo, não entendi bem a situação. Ninguém na fila tampouco sabia. Tive de esperar durante horas, anos ou éons — o tempo tornou-se bastante relativo — até ser atendido e resolver esse enigma.
Enfim chegou minha vez. Por trás de um guichê de ouro, um sujeito com uma enorme barba branca me recebeu.
— Bem-vindo ao Paraíso. Por favor, assine o Formulário de Juízo Final — disse em tom burocrático, estendendo-me um A4 impresso com textura imitando pergaminho.
— Pera aí! Paraíso?
— Sim, jovem. Sua alma deixou o corpo terreno para entrar no descanso eterno.
— Mas o Senhor tem certeza de que meu lugar é aqui?
Ele folheou o livro dos meus dias com irritação. Antes de responder, ainda franziu o cenho algumas vezes ao ver certas passagens.
— Escute, a gente precisou mudar algumas coisas aqui em cima, está bem? No começo quase ninguém entrava, aí a Divina Chefia colocou metas e agora as regras estão mais... flexíveis. Apenas assine o formulário e entre logo porque tenho uma cota para cumprir.
E foi assim que entrei no Paraíso. Enquanto isso, deve circular pela internet um vídeo meu igual ao Brad Pitt se estabacando em Encontro Marcado. Até depois da vida eu morro de vergonha!
oh céus!
O Paraíso não era nada como nos panfletos das Testemunhas de Jeová. Não havia gente passeando com tigres nem segurando bebês coalas nos braços. O verdadeiro milagre nesse lugar seria encontrar um sinal de Wi-Fi.
Algo estava errado. A princípio, pensei que era uma pegadinha à la The Good Place. Mas todo mundo que eu esperava encontrar no Céu via-se aqui: os irmãos Arns, a Irene do poema de Manuel Bandeira, a pessoa que inventou o bolo de cenoura… O problema, descobri então, era eu.
Acontece que minha cabeça ocupava-se de assuntos bem mais terrenos. Quem avisaria que não vou entregar a pauta da semana? Quem vai cobrar pelos artigos que escrevi no mês? E ainda há os e-mails para responder, os boletos prestes a vencer, as frutas apodrecendo na cozinha, as plantas por regar...
Um anjo percebeu minha aflição e veio me ajudar.
— Já ouviu falar do GAPET?
— GAPET? Não ouvi, não, Senhor.
— É o Grupo de Apoio Pós-Experiência Terrestre.
Ele me apontou a nuvem onde o grupo reunia-se, lá eu aprenderia que existe vida após o trabalho. No Paraíso, ele também comentou, somos todos crianças. Ou herdeiros ricos.
A ideia pareceu-me interessante. Disse ao anjo que iria.
descanse em paz
Não foi difícil achar o GAPET. As reuniões ocorriam sob uma placa inscrita com grandes letras douradas: DESCANSE EM PAZ.
— Olá, meu nome é Christian e sou viciado em resolver coisas.
— Olá, Christian! — respondiam-me em coro.
Assim começavam os encontros. Cada ser falava das responsabilidades que precisara abandonar ao morrer. Este tivera um piripaque no meio da tese de doutorado; essa dizia que falecer pegaria mal no emprego novo; aquela tinha passagens aéreas compradas e queria o reembolso.
No fim, ouvíamos um sermão sobre desapego e cada um seguia com a própria morte.
A mensagem aos poucos foi se fixando em mim. Como um efeito dominó, percebi que sem precisar pagar contas não tinha por que me preocupar com trabalho, sem trabalhar pouco importavam prazos e assim por diante. Enfim, o Paraíso!
Só havia um detalhe a resolver. Sorrateiramente, peguei no guichê da entrada papel e caneta para enviar uma mensagem. Então, se você receber esta folha imitando pergaminho, faço-lhe um último pedido:
— Por favor, regue minhas plantas.
Diga lá! Você gosta de textos ficcionais na Newslenta? O tamanho está bom ou deveriam ser mais curtos?
playlícia (+18)
“Em fevereiro tem Carnaval”, canta Jorge Ben Jor sobre um país esquecido por Deus.
Falando nisso, a proximidade da volta do Carnaval me faz pensar que estou desatualizado sobre a MPS: Música Popular Safada. A folia era a única oportunidade do ano que eu tinha de descobrir os hits mais baixos da temporada, entre um bloco e outro.
Mas em fevereiro teremos Carnaval e espero colocar novos sucessos da MPS na playlist Verão & Safadeza, feita no começo de 2020. Nesse meio-tempo ela serviu de embalo para muitas faxinas, como é o destino natural de toda trilha sonora para festa ou sacanagem. Talvez sirva para você também.
vi por aí
Há dois anos tento escrever meu segundo romance, baseado no trabalho de Médicos Sem Fronteiras, que em 2021 completa meio século de atividades pelo mundo. Há dois anos pesquiso sobre o trabalho de MSF e me espanto com a dedicação e a candura dos profissionais diante dos cenários mais desumanos. O Dr. Auzio Varella tem uma série de entrevistas com brasileiros que serviram no exterior e relatam suas experiências.
O que especialmente admiro em MSF é que os profissionais enfrentam a urgência dos problemas, mas também encaram e revelam a raiz de tais problemas. Vejo isso, à sua maneira, no trabalho da Rede Com a Rua em Florianópolis. A união de coletivos para combater a fome na cidade cobra por melhores políticas públicas, em vez de fazer da caridade um fim em si mesmo. Taí uma boa causa para apoiar!
Comer é um ato político, afinal. Juliana Afonso e Nina Rocha publicaram uma série de reportagens no portal Bocado sobre um dos itens centrais na alimentação dos brasileiros: a cesta básica. Não só a composição da cesta precisa ser revista, como sua tributação, para que possamos falar de fato sobre segurança alimentar no Brasil.
Aliás, neste texto na Shifter descobri que existe um termo para representar o desprezo pela miséria dos outros: aporofobia. Mais especificamente, “ódio, repugnância ou hostilidade ante o pobre, o sem recursos, o desamparado”, na definição da filósofa Adela Cortina.
“Habitação, empregabilidade, educação e saneamento básico” são o caminho para interromper o encarceramento em massa, segundo João Marcos Buch, juiz da Vara de Execuções Penais de Joinville. Enquanto isso não muda, um projeto de leitura tem buscado levar cultura e conhecimento à população privada de liberdade no município. O resultado: 12 mil obras lidas em um ano.
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
muito bom!! e o tamanho tá perfeito, tua escrita vai nos levando de um jeito muito leve. :)) to adorando acompanhar a Newslenta!
O tamanho tá ótimo, Chris ;) Melhor leitura pra um domingo de manhã.