O dia estava perfeito. Perfeito! Charles saboreou as três sílabas enquanto olhava a areia, o mar e o sol ardente daquela manhã de 31 de dezembro. Nem uma nuvem pairava no horizonte. A vista fazia-o até mesmo salivar. Teve fome.
Olhou para a esposa bronzeando-se ao lado da sombra do guarda-sol. Vivian assava de barriga para cima como uma lasanha ao molho branco no forno, coisa linda de ver. Os dois filhos pequenos do casal, Marlon e Marlene, brincavam de castelo de areia logo à frente.
Charles sentiu-se um rei generoso por proporcionar esse descanso para a família, depois de um ano tão difícil. Fez bem em alugar uma kitnet de 15 m² no litoral para passar a festa da Virada, os quatro precisavam disso. Ficaram o ano todo presos em casa, numa cidade do interior de Santa Catarina, assistindo com apreensão às cheias do rio por causa da chuva incessante. Mas isso era passado. Aquele dia era o prenúncio de que tudo seria diferente. Ele sentia no ar uma vida melhor a partir daquele instante, nem havia por que preocupar-se mais. Tudo que importava era o sol, o céu azul, a água salgada e o milho que pensava em comer.
— Gurizada, tão com fome? — o pai perguntou aos filhos.
— Siiiiim!
— Tá bom! Assim que o vendedor passar pego alguma coisa — disse, orgulhoso de si, reafirmando a própria generosidade.
Era difícil ver o ambulante com a praia cheia daquele jeito. Nessa procura com o olhar, avistou mais à direita de onde estavam certa comoção entre os banhistas. Mulheres e crianças afastavam-se do mar, enquanto os homens sentados na areia levantavam para ver. Charles também se ergueu para descobrir, quem sabe, um tubarão ou outro bicho d’água. Mas o corpo que as ondas empurravam para a areia era muito humano.
Por espanto e curiosidade mórbida, o pai caminhou em direção ao tumulto. Ali, acima dos ombros de outros curiosos, viu um homem de bruços, com uma cor estranha e a cara enterrada na areia.
— Ele está…? — alguém questionou, com medo de evocar a palavra.
Um surfista avançou para conferir. Cutucou as costelas do sujeito com a ponta da prancha, sem reação.
— É.
Enquanto isso, o intruso era empurrado pela maré ora para a areia, ora para o mar. Os veranistas torciam intimamente para o mar vencer aquele cabo de guerra com o corpo indesejado. Que o levasse de volta para a profundeza, longe da vista.
Os salva-vidas apareceram em seguida, não tendo muito o que fazer. Apenas arrastaram o corpo para a areia seca, dando fim à torcida em volta. Foram chamar uma ambulância ou coisa assim e desapareceram novamente.
Charles estava irado. O corpo não tinha o menor direito de estragar os planos para a Virada. Quem ele pensava que era para aparecer assim no meio de tanta gente? Aquilo era, por cima de tudo, uma ofensa pessoal ao pai de família. Ele merecia um feliz ano novo!
II
Muitos se foram nas águas daquele ano, em meio às chuvas que arrasaram o Sul. Cidades submersas viraram notícia corriqueira em Santa Catarina. Os estragos, avaliados na casa dos bilhões de reais, foram muito mais custosos para as famílias que perderam tudo uma e outra vez. Nos últimos meses, a cidade de Charles teve sete enchentes seguidas. Mal dava tempo de secar os móveis e o rio voltava a transbordar.
O prejuízo da família só não foi maior porque viviam em uma casa de dois pavimentos sobre um terreno muito estreito. No térreo ficava a sala, a cozinha e a área de serviço. No andar superior, o banheiro, o quarto do casal e o dos pequenos. Isso os salvou quando a água invadiu a rua.
Charles mal conseguiu voltar do trabalho com o bairro já alagado. No cair da noite, a enxurrada tinha alcançado a porta de casa. Ele e a esposa não tiveram muito tempo para se preparar. Levaram escada acima o que deu: o sofá, a televisão, a geladeira, o fogão, o botijão, as comidas, alguma louça e mais uns cacarecos, enquanto as crianças gritavam olhando a janela:
— A água tá subiiiiindo!
Os grandes armários e a mesa lá embaixo foram deixados à própria sorte. Em cima, tudo ficou minúsculo. Cozinhavam no quarto do casal, deitando-se com o cheiro de fritura impregnado nas cobertas. Marlon e Marlene dormiam ao lado da geladeira. Vivian lavava as roupas no box do banheiro, secando-as com um ventilador. Charles, para descer ao térreo, precisava pular o sofá no meio do corredor.
Ficaram alguns dias dessa maneira. Então, quando pensaram em descer a mobília, o rio voltou a subir. Decidiram viver assim até que a chuva parasse de vez. Isso durou meses. Outras famílias não tiveram tal sorte. A chuva levou tudo delas, até os parentes. A trégua só veio em meados de dezembro.
No meio do aperto, Charles prometia à família e — acima de tudo — a si mesmo que passariam a Virada na praia, que faria sol e que seria perfeito. Sim, enterrariam para sempre aquele ano de desgraças. Tudo bem que depois teriam as prestações dos móveis novos para pagar, mas ele concederia primeiro esse luxo tão merecido.
III
Ele merecia um feliz ano novo! Nada tiraria isso de sua cabeça. Nada o impediria de aproveitar aquele momento.
Veio para junto da família, que olhava a cena, e pegou uma canga. Voltou para perto do corpo e cobriu aquilo da vista. Feito isso, foi sentar-se sob o guarda-sol. Os outros também debandaram aos poucos, silenciosamente gratos pelo gesto.
O sol ainda brilhava, o vento ainda soprava, o mar ainda convidava ao banho, mesmo que a ambulância ou o que quer que fosse demorasse a chegar. A poucos metros, um grupo de amigos voltou a jogar altinha, outros foram nadar. Vivian virou-se para queimar as costas. As crianças retomaram as obras no castelo de areia. Um ambulante atravessou a multidão:
— Olha o milho! Olha o milho quentinho!
Charles chamou a atenção dos filhos:
— Gurizada, querem?
Eles apenas balançaram a cabeça negativamente. A verdade é que ninguém mais ali tinha fome. Nem Charles.
Você decide.
Tenho dois projetos literários para 2024: escrever meu segundo romance e um livro de contos. Neste incluirei textos da Newslenta, então muito me ajudaria se você comentasse daqui para a frente as edições que apreciou ou detestou. As respostas serão meu termômetro para essa futura publicação.
Obrigado!
playlícia
Virada de ano é aquela porta entreaberta que nos convida a olhar nas duas direções, futuro e passado. Essa, por sinal, é uma frase bem pomposa para dizer que fiz uma playlist com os melhores discos de 2023.
Em resumo, meu álbum internacional favorito do ano é On the Romance of Being, do sul-africano Desire Marea. Meu brasileiro preferido é Curyman, de Rogê. A faixa que mais me marcou foi Rest, de ANOHNI. Mas tem muito mais em O som de 2023. Ouça!
Mensagem de Ano Novo
Para fechar, um trecho de um poema que escrevi:
Caros amigos, venho informá-los: nesta hora festiva não contem comigo para dar boas-vindas ao Ano Novo, esse desconhecido, até que ele se prove nosso amigo. Que entre vocês cada um faça seu próprio discurso! Sua paz é minha paz e o que lhes apraza também me apraz. É melhor assim, acho: o que bem desejarem assino embaixo.
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
Gostei desse, mas faria uma edição tirando os trocadilhos mais óbvios 😊🧡
Gosto de teus contos, a tua escrita flui continuamente... sou a favor deles.