“Estive aqui por alguns malditos anos
Enchendo os ocos com malditos medos
Estou livre agora”
Bon Iver — Heavenly Father
Saio da cozinha com dois pratos de almoço. Arroz, feijão, bife acebolado, batata frita, um pouco de salada. Mas tudo que sinto é o cheiro de gordura, ele já está grudado nas paredes, nas mesas, em mim.
O celular vibra no bolso do avental enquanto equilibro a bandeja com uma mão e pego uma Coca-Cola e uma água sem gás na geladeira com a outra. Jadilson está fogo hoje! Passou a manhã toda mandando mensagem, disse que está louco pra me ver. Quero é novidade. Eles se fazem de apaixonados, falam que vão me tirar deste lugar, e no fundo só querem tirar minha calcinha. Eu deixo, às vezes, porque não tem nada melhor pra fazer neste cafundó. E eles não prestam pra nada mais. Muitos nem perguntam o meu nome.
São sempre homens de passagem. Eles vêm, eu os sirvo, eles vão. É assim desde que me lembro. Jailson que é teimoso, nunca vi igual. Ele faz coisas engraçadas, como segurar minha mão. Fala de sonhos e outras tolices. Quer comprar o caminhão do pai, começar uma empresa, me ver hoje à noite. Se eu der trela, o tolo mais um pouco me pede até em casamento. Não tenho tempo pra isso, tenho mesas pra servir.
— Um almoço com Coca.
— Ô, que delícia!
O sujeito não está nem olhando pro prato, só pra mim. Caminhoneiro é tudo cretino mesmo. Sinto os olhos dele na minha bunda enquanto me afasto. Pois pode olhar, safado, isso é tudo que vai ter de mim.
Na outra mesa tem esse velho. Ou velho demais pra ainda estar na boleia. Deve ser um motorista desavisado qualquer. Coitado! Parou no pior restaurante do caminho. Está lá tão perdido que não me vê chegar.
— Com licença, um almoço com água sem gás pro senhor.
O velho encara o prato como se faltasse algo. Ajeita os talheres, olha inquieto ao redor da mesa.
— Posso trazer algo mais pro senhor?
— Desculpe, como é seu nome?
— Meu nome? Scheila.
— Na verdade, Scheila, você pode… rezar comigo?
O que ele disse? As últimas palavras saíram tão fraquinhas que entendo é nada.
— Por favor, você pode rezar um pai-nosso comigo?
Taí uma novidade! Hoje estão de brincadeira comigo, não é possível. É pegadinha? Cadê as câmeras? Fico esperando ouvir um glu-glu ié-ié a qualquer momento, quando o velho diz, se constrangendo todo.
— Eu perdi… perdi minha esposa há pouco tempo, que Deus a tenha. Você vê, Scheila, foram 54 anos de casamento e a gente rezava junto todo santo dia, toda refeição. Ela pegou o barro que eu era e fez de mim um homem. Agora não sei o que fazer sem ela, não sei fazer as coisas de outro jeito, por isso estou indo para a casa dos nossos filhos. Você rezaria comigo neste caminho?
Ele fala e fala e meu olhar está preso na aliança do dedo dele. Vejo o ouro arranhado pelo tempo, sem brilho, mas ainda firme. O metal e a carne são uma matéria só. Tenho pena, claro! Mas rezar? Quero é fugir dali, quero chorar, quero rir como uma louca, e tudo que consigo é dizer sim. Ele começa…
“Pai nosso que estais nos Céus”
Deixo que ele comece sozinho. As palavras levam algum tempo até achar minha boca e, quando vêm, lembro como queimavam na minha pele. Quantas vezes rezei em voz alta enquanto o cinto do meu pai ardia nas minhas costas? Ele, o pastor. Eu, a filha desobediente. Mas, depois de tantos anos sem rezar, até o pai-nosso soa grego pra mim.
Qualquer coisa era motivo para punição. A casa então virava o próprio inferno. Pro meu pai não bastava ser pastor, ele queria é ter a imagem dos mártires, dos profetas, e isso incluía eu e minha mãe, duas partes dele que precisavam ser purificadas a todo custo.
O pior de tudo é que acreditei nele. Quando era criança, entendia o bem não como algo bom, mas como um estado de vigilância. O mal estava em toda a parte e, sem ter como o prender, a gente precisava se fechar entre paredes muito apertadas para evitar que ele entrasse.
Nem fui a única a acreditar. Toda a igreja adorava meu pai. Mais do que isso, os irmãos viam em nossa família um exemplo a ser seguido, só que impossível de ser alcançado, porque só meu pai tinha a fé e o ferro que o caminho da virtude pedia.
“Santificado seja o Vosso nome”
Quanto pecado os homens de Deus abrigam em casa?
Foi tudo tão de repente: uma noite meu pai simplesmente disse pra minha mãe que estava de saco cheio da gente, que amava outra mulher e estava de malas prontas pra partir com ela. A pateta da minha mãe só ficou chorando e não disse nada. A porta bateu e a gente ficou sozinha.
Foi aí que conheci meu pai de verdade. Depois que ele fugiu, todo mundo tinha um rumor, uma suspeita, um disse que disse. Essa mulher que ele via não era a única, não. Eram várias.
Aprendi nessa época que os pecados de verdade são sempre guardados em silêncio por quem tem o dedo apontado para os outros. Mas, na igreja, os olhares dos irmãos diziam que a gente era a culpada pela traição. Se minha mãe tivesse feito ele mais feliz, se eu fosse uma filha melhor, eles não teriam perdido o pastor. Então a gente parou de ir aos cultos pra evitar a vergonha. Acho que minha mãe nem precisou avisar ou explicar o motivo. Foi a única vez que a gente se entendeu realmente.
“Venha a nós o Vosso reino”
Aos poucos, tudo reaparece. As palavras, os nomes, os dias, os sentimentos, a fome. O abandono não deixou só um lugar vazio na mesa, também esvaziou a comida que a gente colocava nela. Meu pai proibia a mãe trabalhar, aí quando ele foi embora a gente ficou é sem saber o que fazer. A gente tentou um pouco de tudo: faxina, lavar roupa, cuidar de criança e de velho. Se não fosse a pena do pessoal fora da igreja, a miséria teria sido pior ainda. Tinha semana que arroz era tudo o que dava pra comer.
Larguei a escola pra ajudar em casa. Foi aí que a relação com a mãe desandou de vez. Cada uma via a outra como mais uma boca pra alimentar, um problema pra resolver, e no fundo a gente se culpava igual os outros faziam com as duas. Quer dizer, eu me culpava e culpava ela com a mesma força em dias diferentes, imagino que ela também. Enquanto isso, o verdadeiro culpado estava abrindo uma nova igreja em outra cidade, com outra mulher e outra família.
“Assim na Terra como no Céu”
Os anos passaram e a gente sobreviveu, eu e minha mãe. Mas, assim que completei dezoito anos, saí de casa pra tentar a sorte sozinha. Uma garota pobre e sem estudo feito eu nunca chegaria longe na vida, então minha única chance de deixar tudo aquilo pra trás era ir o mais longe possível. O problema é que a gente leva sempre mais do que deseja.
O que eu queria é ser como aquelas famosas que tiram uns tempos pra fazer nada além de viajar. É muito fácil se encontrar em Fernando de Noronha ou onde for que essa gente rica vai. Quem é fodido precisa trocar a roda com o carro andando. Então fui guardando tudo dentro de mim, me distraindo com um emprego aqui, outro ali. Mudava de cidade antes de ficar muito acostumada, muito pensativa, até vir parar neste fim de mundo. Foi onde aguentei mais tempo. Tudo passa à minha volta e isso me poupa o trabalho de me mudar.
Aqui um dia me ligaram pra dizer que meu pai tinha morrido. Era uma voz de mulher. Ele morreu. Ah, tá! Silêncio. O que ela queria dizer é que ele morreu e não deixou nada pra mim. Isso eu já sabia. Meu luto durou quatro lágrimas, aí desliguei o telefone porque tinha mesas pra servir.
“O pão nosso de cada dia nos dai hoje”
Onde está esse Deus generoso? Cadê o Deus do amor? Tudo que conheci Dele foi a violência e o descaso. Deus não escuta as mulheres, só pode.
É engraçado como a gente cresce, mas no fundo é a mesma criança. O primeiro exemplo fica grudado como o cheiro de gordura. Se eu não recebi amor em casa, talvez não mereça. Talvez ele nem exista. A gente inventa essas coisas pra achar alguma justificativa. Aí trabalha, trabalha, trabalha, tudo criança em pele de adulto, até ser recompensado com um lote no cemitério.
“E não nos deixeis cair em tentação”
Hoje me alimento de medos como a garota que só tinha um prato de arroz pra comer dia sim e outro também. Esse medo sem nome de que eu possa ser feliz, porque aí vou precisar reaprender a vida. Não é fácil ser triste, não quando a escola do destino nos cobrou tanto, então a gente se apega ao que sabe.
Mas até quando vou pagar os pecados do meu pai? Me sinto ridícula só de pensar que seria mais rápido perdoar ele do que me perdoar pelo mal que ele e só ele fez. Depois de tantos anos morto, o fantasma dele ainda está no reflexo que vejo no espelho. É essa imagem que me nega o amor jurando que eu não mereço. E, apesar de tudo, Jailson me ama! Acho que me casaria com ele só pra descobrir o que viu em mim.
“Mas livrai-nos do mal”
Quando era pequena, a única figura da Bíblia que eu tinha minha simpatia era Jesus. Mais um filho pagando pelos erros do pai, eu pensava. Mas eu não sou Jesus! Essa cruz não deveria ser minha pra carregar. Por que vou me obrigar a servir a mesa sem nunca me sentar nela? Já passei muito tempo na marginal da vida não me sentindo digna. E quem me ensinou a ser assim? Como fui confiar na lição de quem nunca me quis bem? Tenho muito mais pra aprender. Tenho muito mais pra viver. Jailson tem sonhos pra vida como eu nunca sonhei. Ele quer me encontrar esta noite. Quando segura minha mão, é como ouro pra mim em volta dos meus dedos. Sim, eu mereço mais. Sim, vou ver ele. Sim, eu digo sim.
“Amém!”
Acabou o conto, mas fica a pergunta: o que você faria se um estranho pedisse para rezar com você na rua?
playlícia de fim de ano
CAJU foi o melhor disco brasileiro de 2024. Viva Liniker! Mas também achei Prece, de Luiza Brina, e Outros Fios, de Chico Bernardes, duas obras excelentes. E Acelero, do Crizin da Z.O., foi o som mais emocionante desse período.
Como de costume, reuni as faixas dos melhores discos e canções que me marcaram no ano. Então, ouça agora a playlist O Som de 2024 e me conte seus favoritos de 2024.
vi por aí
A apresentação de Mina Lund no The Voice Noruega, em 2019, que por caminhos estranhos inspirou a alma do conto que você acabou de ler.
- está apresentando numa série de textos o perfil de Gala Dalí. O sobrenome você deve conhecer, mas vale descobrir também quem foi essa mulher importante para a época em que viveu e que, como tantas figuras femininas, teve o nome relegado a um segundo plano da história.
Fiquei bem entretido com este vídeo de Esther Perel falando sobre o segredo para manter o desejo vivo em uma relação duradoura (em inglês).
O melhor podcast que ouvi em 2024 foi a matéria em áudio do Posfácio Podcast, de
, sobre as enchentes no Rio Grande do Sul. Chorei na rua ouvindo o episódio Literatura Submersa.E me despeço com os poemas afiados de Eunice Arruda: “sim / há / as horas de trégua / Quando se afiam / as facas”.
Chegou aqui nem sabe como? Deixe uma curtida para guardar a Newslenta no seu coração.
Um abraço do Chris
Que texto bom!
Tá rolando um fenômeno aqui nos shoppings de João Pessoas das pessoas pedirem pra rezar com você e depois oferecer algum livro religioso. Eu sempre rejeito. A gente sabe do que essa galera é capaz.