é tudo isso a minha vida
O ano era 2014. O local, uma casa de repouso em Curitiba. Eu tinha 25 anos e entrei ali para coletar histórias para um projeto que buscava as mais variadas histórias de amor.
Nessa ocasião coletei o relato de Dona Mercedes, que amou Vitório, mas casou com Otoniel. Aos 91 anos, ela revisitava a juventude com toda a lucidez. Isso me permitiu registrar a história dela para que não fosse esquecida. E não esqueci — ainda hoje penso muito no que me disse.
Estas foram as palavras dela…
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Eu sou de José Bonifácio, lá no estado de São Paulo, para lá de Rio Preto.
O meu pai era o que mais tinha (gesto de dinheiro). Tinha muitas fazendas, muito gado e comprou um sobradão que era o cartão-postal da cidade. Fui para lá com seis anos. Crescemos lá, estudamos lá, casamos lá. Casei com ele (Otoniel) contra a vontade.
De tanto ele amolar, meu pai enfezou e foi marcar o casamento. Ah, foi muito triste, viu! Não gostava dele, não queria casar com ele. Daí quem eu gostava mesmo (Vitório) ficou. Desde o dia que Otoniel me viu, ele não sossegou mais. Falou que se eu não casasse com ele, ia me matar e se matar, aí minha mãe e meu pai ficaram com medo e fizeram o casamento. Meu Deus do céu!
Eu e minha irmã fomos ao cartório para assinar os papéis, porque no dia do casamento ia ser um rebuliço danado. Aí Vitório estava esperando eu passar. Coitado; amarelo, chorando. “Mercedes, você não casa, Mercedes... Fala na hora que não quer casar com ele, que você não casa. Meu pai vai adiantar a minha idade mais um ano pra nós casarmos logo.”
A família dele gostava de mim. Eu chegava na casa dele – eu tinha 14 anos, ele tinha 14 também – e iam tirar porcelana do fundo do baú para servir para mim.
Ele chorava, eu chorava. Parecia que eu estava hipnotizada, sabe? Todo mundo falava: “Mercedes, quando a pessoa vai casar fica tão alegre, mas você está tão triste”. Aí eu falava: “Ah, vocês não sabem o que está aqui dentro (aponta para o coração)”.
Depois que eu casei, nós tínhamos um alambique de pinga na entrada da cidade e eu fui morar lá nesse alambique. Ali era a estrada do Vitório passar. Ele passava olhando, olhando, olhando lá para a minha casa. Às vezes eu estava no quintal e me recolhia ligeiro e ficava olhando pela gretinha da janela até ele sumir.
Otoniel foi caprichoso, não digo que não, mas foi ciumento que queria me pôr dentro de um baú e fechar. Eu não podia olhar uma coisa que ele já queria ver o que era. Nunca tocou no nome do Vitório, nunca. Quando ele queria me namorar e eu não queria, os dois ficavam bebendo e quebrando as coisas no restaurante, brigando lá. Quebravam tudo e depois iam pagar. Eu lá no sobradão dormindo nem sonhava, só ouvia o boato que saía.
A minha mãe falava: “Nenê, ele é um moço bom de família”. Aí eu: “Mas eu não gosto nem de olhar pra cara desse moço”. “Olha, se você não casar com o Otoniel, com o Vitório você não casa, não.” “Por quê? Eu vou casar com quem eu gosto, não vou casar pra fazer boniteza para ninguém”, mas a mãe não queria, aí Otoniel criou asa mais ainda. Hoje eu estou com 91 anos. Faz 26 anos que fiquei viúva.
A minha filha passou uma internet para Fernandópolis, para saber do Vitório. Eu falei assim: “Eu estou viúva, se ele estiver viúvo nós podemos contrair um casamento bonito”. Mas aí o homem do cartório falou assim: “O Seu Vitório morreu, ele morreu novinho com 45 anos, em 1969”. Infelizmente, não deu certo.
Até hoje eu penso nele; do outro nem lembro. Quando não tem que dar certo, não dá. Eu passei uma vida de tristeza, mas criei meus filhos todos sadios, todos estudaram, quatro filhos homem e cinco filhas mulher. É tudo isso a minha vida.
Você teria coragem de compartilhar sua maior história de amor com alguém desconhecido? O que achou do relato de Dona Mercedes?
playlícia
Florianópolis completou 350 anos em 23 de março. Sei que não estamos no melhor momento em termos de imagem, mas é a cidade em que moro e que, no fundo, amo.
Luiz Henrique também amou Florianópolis e a cantou em versos. Uma boa forma de conhecer a bossa nova dele é por meio do álbum Barra Limpa, meu favorito, e na música Florianópolis:
“Eu sinto pena de não termos
João Gilberto pra cantar
E o Tom Jobim pra musicar
Para Vinicius versejar
Mas todos cantam a sua terra
Também a minha vou cantar”
Nem posso esquecer Zininho, outro clássico local. O poeta é autor do Hino de Florianópolis, o Rancho de Amor à Ilha.
Realmente, jamais a natureza reuniu tanta beleza. O problema é um pessoal careta queimando nosso filme.
playlícia 2
Enquanto você recebe esta newsletter, provavelmente estou nadando no Rio São Francisco. Vim conhecer Petrolina e Juazeiro e, claro, fiz a preparação para a viagem da melhor maneira: escutando todas as músicas possíveis sobre o rio e a região.
Aqui, para poupar seu tempo, selecionei o Top 15 do Velho Chico.
vi por aí
No Instagram costumo registrar o pôr do sol no Salão de Festas das Bruxas de Itaguaçu. À primeira vista, é um conjunto de rochas na praia de Itaguaçu, região continental de Florianópolis. Mas diz a lenda que são bruxas transformadas em pedra por não terem convidado o Diabo para uma festa. O autor dessa história foi o museólogo, historiador e escritor Gelci José Coelho, o Peninha, que faleceu neste mês.
Floripa e Gilberto Gil têm rusgas que não são de agora. Para quem não sabe, ele foi preso na capital catarinense em julho de 1976, pouco antes de um show dos Doces Bárbaros, por porte de maconha. Uma matéria da época traz um relato do caso e mostra que em cinco décadas nada mudou em relação à abordagem às drogas.
Por causa da viagem a Petrolina, conheci a tradição do Samba de Veio, da Ilha do Massangano. São mais de 100 anos de história para contar e cantar.
Ali ao lado, em Juazeiro, nasceram dois grandes músicos. João Gilberto, o pai da bossa nova, e Luiz Galvão, um dos fundadores dos Novos Baianos. Essa conterraneidade foi aproximar os dois atos musicais no Rio de Janeiro, quando João bateu na porta da banda no meio da madrugada. Era o primeiro passo para o surgimento de Acabou Chorare. Eu amo essa história!
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
"É tudo isso a minha vida, marcada por ser mulher". Tadinha :(
Mas ela conta quase que com um desprendimento da história, uma aceitação do tempo, sabedoria de "velha". Eu gosto da perspectiva de envelhecer.
E adoro todos os links da newslenta, obrigada!