a vida secreta de érico silva
Esta é uma história modesta, como se espera de todas as vidas pacatas. Nos 52 anos do contador Érico Silva, os únicos três eventos marcantes foram o nascimento de sua filha Rachel, o casamento com sua falecida Fátima e o atropelamento que naquela manhã causara-lhe uma ligeira amnésia.
Ao acordar no hospital, Érico foi tomado mais pelo susto que pela dor. Exceto por uma leve batida na cabeça, mal se podia dizer que o golpe do acaso impedira-o de chegar pontualmente às 8h25 ao escritório de contabilidade onde trabalhava há três décadas.
O maior prejuízo do acidente foi a amnésia. Mas não se tratava de qualquer perda de memória. Nos dias seguintes àquela fatídica manhã, Érico não podia lembrar-se de um livro sequer que tenha lido nem revista ou notícia de jornal.
Ele ainda sabia ler perfeitamente, jamais confundiu um nome que aprendeu de ouvido ou teve dificuldade nas tarefas básicas da rotina. Entretanto, imagine viver em um mundo sem aventuras homéricas, sem a visão de um inferno e um paraíso dantescos ou sem ilusões quixotescas. Teria esse mundo igual perfume? Teria a mesma razão e sensibilidade? Pois essa era a realidade que esperava Érico Silva, aos 52 anos, pelo resto de seus dias. Somente ele de fato poderia descrever tal sensação, se ao menos soubesse com que palavras expressar esse vazio.
a busca pela palavra
Qual foi a surpresa dele ao voltar para casa, onde morava com a ausência de sua esposa havia três anos, e encontrar estantes cheias de livros dos quais não tinha a mínima lembrança. Chegou a surpreender-se com seu eu passado por ter tantos volumes à disposição. Como uma visita na própria vida, teve a curiosidade de saber se já lera todas aquelas obras. Ou seriam de sua amada Fátima?
Imaginando-se leitor, pôs-se a ler avidamente, pois talvez em algum desses livros estaria a resposta para o vazio que sentia. Favoreceu-lhe que depois do acidente tivesse tempo de sobra para a leitura. Por causa de sua peculiar amnésia, foi obrigado a aposentar-se, já que não se lembrava dos meandros da profissão, embora não se visse como nada além de um contador.
Sem referência alguma de literatura, Érico começou sua descoberta pelas edições especiais, com capa dura, papel dourado e belas ilustrações, porque essas pareciam mais importantes. Cada leitura era um mundo que se abria. No entanto, apesar do maior vocabulário de ideias que os livros ofereciam-lhe, em nenhum deles achava as palavras exatas que desejava expressar.
Aos poucos, o ex-contador foi trilhando um caminho próprio pelas estantes, conforme os gostos dele amadureciam. Os Sertões sucediam a Sibéria do final de Crime e Castigo; após Uma Viagem em Volta do Meu Quarto descobriu o Quarto de Despejo; o humor de Machado e Wisława contrapunha os sofrimentos de Northup e Frank; Rilke levava a Jacobsen — e nada preenchia o vazio.
Passaram-se alguns anos e muitas leituras. Nesse período, ele se tornou avô e ficou feliz que sua neta se chamasse Clarissa, carregando o nome de uma de suas personagens favoritas.
Quando parecia ter lido tudo, ou quase isso, Érico acreditou que não houvesse palavras para o que sentia. Talvez sua experiência de vida não fosse digna dos livros, ainda assim ele gostaria de dar voz à falta que Fátima fazia-lhe, de poder descrever o amor que lhe guardava, como nenhum outro, mas que carecia de vocábulos. Foi então que encontrou, num dos volumes mais simples de seu acervo, os versos de Vero Calisi.
“Viver nunca foi uma porta aberta —
a vida (quando muito) é janela,
que acontece nas brechas, pelas frestas
nas coisas insuspeitas e tão belas.”
Vero Calisi
um poema para chamar de seu
Vero Calisi apareceu do nada. Nenhum autor antes ou depois dele jamais o citou, nenhuma livraria ou biblioteca tinham-no em catálogo. Até para a internet a obra dele figurava um mistério. O que era uma pena, porque Vero tinha as palavras que Érico tanto procurara. Em algumas dezenas de poemas, o escritor dava uma forma concreta à visão de mundo de Érico, emprestava corpo aos sentimentos dele. Os textos eram lentes que davam maior nitidez à própria vida.
“A sina inevitável nos impele A encarar a memória contumaz Como se tatuada sobre a pele – Temos a vida toda para trás.”
Na ausência de outros livros do mesmo autor, Érico leu e releu aquela breve coletânea. Em certo momento, já sabia os versos de cor e agora possuía as palavras certas para qualquer ocasião. Referia-se a Vero em conversas, transcrevia-o em cartões de aniversário e chegou a emoldurar poesias do outro pela casa.
No entanto, nem todos compartilhavam do seu entusiasmo. Os parentes mais próximos olhavam-no com estranheza sempre que mencionava a obra veriana. Sua filha até riu certa vez, então Érico decidiu compartilhar sua paixão somente com desconhecidos a partir daí.
Essa era a vida secreta de Érico em seus últimos anos — e foi uma vida completa, porque se vira refletido naquelas páginas.
Também na perda Érico e Vero assemelhavam-se. Nos últimos textos, o poeta descrevia uma saudade igual à que o ex-contador sentia. Nisso havia algum conforto. Não que parasse de doer, é como se a dor encontrasse uma cama para enfim descansar.
“No teu menor encanto há tanta graça Que ainda ficas, mesmo quando passas, Tão viva na lembrança como outrora. Levo assim tua presença nunca escassa Comigo em todo canto, mundo afora, Louvando teu ocaso e tua aurora.”
Quando pensava em Fátima, Érico sussurrava aqueles versos e ficava em paz. Ele ainda viveu muitos anos após o acidente e morreu de morte tranquila, como se espera de uma existência pacata.
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epílogo
Passaram-se três semanas até que Rachel tivesse coragem para arrumar a velha casa. Clarissa, agora uma jovem, acompanhou-a nessa tarefa. Ao ver um livro já bastante folheado na mesa de cabeceira de seu avô, do mesmo autor emoldurado nas paredes, ela perguntou à mãe se conhecia esse tal de Vero Calisi.
— Mas é claro! Era seu avô.
— Vovô escrevia?
— Sim, desde que conheceu sua avó. De dia era contador, à noite era poeta. Por isso ele assinava os poemas com esse anagrama “Vero Calisi”. Dizia que era o eu mais verdadeiro dele, o eu que vivia entre livros e estava perto da família. Aí quando sua avó faleceu, a gente fez esse livro de presente para ele se alegrar um pouco. O engraçado é que nos últimos anos ele pegou essa mania de se referir a si mesmo com o nome de poeta. Sei lá, coisa da idade…
— Uau! Posso pegar o livro pra mim?
— Pode sim… Ele ia ficar feliz. Seu avô teve uma história muito bonita.
Sabe, eu adoraria esquecer algumas experiências artísticas só para sentir aquele primeiro arrebatamento ou aquela surpresa de novo. Você também? Algum exemplo em especial?
playlícia
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vi por aí
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Um abraço do Chris
Um conto para procastinar o trabalho no meio da tarde sem culpa. Leio centenas de palavras nessa tela diariamente, mas é raro que elas me acalentem e façam sorrir... Obrigada por isso, Chris! Vida longa à News Lenta!
Leitura preciosa!