A máscara da eternidade
I
Na idade de 37, William tinha vivido mais que o esperado para seus contemporâneos no ano de 1060 do Nosso Senhor. Embora não fosse de muitas posses, ele conquistou tudo quanto um ferreiro inglês seria capaz de conquistar naquele tempo. Possuía um ofício, uma pequena porção de terra, oito galinhas, duas cabras, um cabrito, uma leitoa, uma esposa e cinco filhos vivos.
Mas, tendo escapado à invasão normanda, a várias moléstias e à forja quente, sabia que a morte não tardaria a bater à sua porta. Essa preocupação invadia seus pensamentos diários, suas preces, sua insônia e seus sonhos. William daria tudo para evitar esse encontro. Então, quis o destino que encontrasse uma figura ainda mais trágica.
Aconteceu assim: uma viagem de negócios levou-o até certo vilarejo mais distante e ali precisou passar a noite. William jantou numa taberna vazia, mal-e-mal cuidada por uma senhora sonolenta. Teve mesmo de acordá-la para conseguir, contra muita má vontade, uma sopa rala de vegetais e um pão seco. Só não comeu no mais absoluto silêncio porque a dona já voltara a roncar.
Enquanto terminava a refeição, a porta da taberna rangeu, anunciando a chegada de outro visitante. Passos cansados balançaram o chão de madeira em direção ao ferreiro, ainda sem tirar os olhos do prato. Foi somente quando a sombra do recém-chegado cobriu a mesa que William reparou na criatura postada ali.
À sua frente, o homem vestia uma casaca preta até os joelhos, rasgada aqui e ali, por cima de um corpo esquálido e curvado pelo tempo. Nas pontas das mangas sobressaíam mãos como lenços encardidos. Mais estranhamente, sobre o rosto usava uma máscara branca e inexpressiva, deixando um vazio onde deveria estar a alma do sujeito. Os ocos dos olhos eram dois abismos e, em vez da boca, via-se uma fresta entre lábios que jamais sorriam.
O estranho pediu com polidez para sentar-se com William. Este, desconcertado, disse sim querendo dizer não. O outro acomodou-se, tirando dois dados do bolso.
— O cavalheiro não bebe? — perguntou o mascarado, notando a ausência de uma caneca à mesa.
— Não, senhor.
— Jogaria uma partida de Hazard com um velho?
— Não, senhor.
— Por acaso não joga?
— Nunca apostei uma galinha sequer.
— Nem é dado aos prazeres da carne?
— Só os que Deus permite.
— Pelo que vive, então?
William engasgou a resposta pela primeira vez. O estranho, ciente do mal-estar causado, apressou-se em emendar:
— O cavalheiro pelo visto cuida-se bem. E como é forte! Trabalha muito?
— Ferreiro, ao vosso dispor.
— Ah, um artesão, um trabalhador! Agora, se me permite a curiosidade, o que o leva a tomar um caminho tão virtuoso?
— Evitar a morte, ora!
— Ainda assim, ela chega a quase todos.
— Quase? Não a todos?
— Ah, o cavalheiro é muito perspicaz! E se eu lhe dissesse que é possível adiar a morte indefinidamente?
Pelo brilho súbito nos olhos de William, o mascarado soube que havia tocado as notas certas na melodia das palavras. Ele contou que um sujeito também de máscara o havia abordado nesse mesmo estabelecimento, numa ocasião como aquela, quando a proprietária ainda dormia no colo da mãe, em vez do balcão.
A oferta que ouvira daquele homem ora a fazia a William: enquanto usasse a máscara, doença ou fome não o definhariam nem espada ou lança o machucariam. Viveria por décadas, séculos se o quisesse, quem sabe até mais. A única condição é que só poderia usá-la uma única vez. Se a tirasse, por qualquer motivo, estaria desfeito o trato. Era isso.
William ponderou aquilo enquanto o outro chacoalhava calmamente os dados na mão. Tivesse o estranho lhe oferecido riquezas, um título, o que fosse, já o teria deixado falando sozinho. Mas todo homem, enfim, tem seu preço.
— Serei imortal? — perguntou William, inclinando-se para a frente.
— Sim. Enquanto usar a máscara.
— E o que me pede em troca?
— Absolutamente nada.
— Nem a alma?
— Nada. Essa é a beleza do trato. Sua alma irá para onde suas ações apontarem.
— Se a máscara oferece tanto, sem nada tomar em troca, por que o senhor não fica com ela?
— Porque, quando a coloquei, já estava com um pé na cova. A máscara não o deixará um dia mais jovem, apenas o manterá como neste instante. Agora imagine como tem sido para mim viver décadas a fio como quem se arrasta pelo mundo. O cavalheiro fará um melhor uso desse dom. Aceita-o?
William não acreditava, querendo desesperadamente acreditar naquela promessa. Ficou calado, mergulhado nos próprios pensamentos, mesmo quando o outro tirou a máscara do rosto e deixou ver uma face macilenta, coberta por ralos cabelos brancos.
O estranho pôs a máscara sobre a mesa, sorriu timidamente e levantou-se, guardando os dados no bolso.
— É sua escolha. Eu terei de encarar a minha — disse antes de sair.
A porta batendo atrás de si acordou a dona da taberna.
— Hm, o que você quer? — ela resmungou para William.
— Ora, a senhora não viu o homem que acabou de sair? — ele retrucou.
— Que homem?
Talvez William estivesse delirando. Talvez tivesse dormido também. A única certeza era a máscara branca à sua frente.
II
Ele não dormiu naquela noite e, antes de o galo cantar, tomou o caminho de volta para casa. Ainda não decidira pôr a máscara, mas seu pensamento já ia mais adiante, inventando explicações para andar por aí como um bufo.
O certo é que não poderia contar o encontro como aconteceu, ou imaginava ter acontecido, pois ele próprio duvidava de sua sanidade. Nem deveria explicar a verdadeira natureza do objeto. A imortalidade, ele fingia não perceber, cedo ou tarde afastaria todos de sua vida. Seria melhor carregar essa culpa em segredo.
A história que contaria começava com um ataque de ladrões, não, cães selvagens no meio da estrada. As criaturas bestiais atacaram-lhe a face e o desfiguraram, isso! Por sorte, um médico passou na hora, espantou as feras e atendeu os ferimentos de William. O piedoso homem, para completar a boa obra, ofereceu uma máscara de modo a ocultar a horrenda cicatriz no rosto.
Nada habituado à arte da mentira, William sequer reparou no fato de que a cicatrização teria levado menos de um dia. Se bem que, naquela época, tudo era mais credível. Nem sobrava tempo para divagações — naquele momento, ele atravessava a ponte romana sobre o rio que marcava os limites de seu vilarejo. A correnteza batendo contra as rochas sob seus pés refletia o turbilhão em sua cabeça. E se amanhã se ferisse? Se de fato se desfigurasse, no calor da forja? Essa era a eternidade que desejava para si? Não. Era o caso de agora ou nunca. Assim, William colocou a máscara antes de voltar para casa.
Os primeiros cinquenta ou cem anos foram os mais difíceis. Will não tinha maiores planos ou ambições em relação à imortalidade. Inicialmente, dedicou-se ao trabalho, aos animais e à família como de costume. Entretanto, o estranhamento era inevitável e passou a dominar seus dias. Nem a casa para a qual voltara era mais um lar.
Na missa dominical, na feira, no caminho da oficina, ouvia atrás de si comentários e risos abafados. Engoliu tudo a seco, esperando a promessa da imortalidade. Sua esposa, de natureza mais sensível, recusava-se a ser vista com ele. Dizem que morreu de desgosto, não podendo mais encarar seu esposo.
Essa foi a primeira de muitas mortes que ele presenciou. Então foram os filhos, e os filhos de seus filhos, a povoar o cemitério local. Ninguém viu Will derramar lágrimas em qualquer desses enterros, apenas percebiam o ferreiro da horrenda face enterrar-se cada vez mais na penumbra da oficina, entre suas ferramentas e o ferro em brasa. A verdade é que, a cada morte ao seu redor, o peso da dúvida ficava mais leve. Era quase um alívio. Sim, era mesmo imortal.
Mas, passado tanto tempo, ainda martelava em seus ouvidos a pergunta:
— Pelo que vive, então?
Sinceramente, não sabia a resposta e já estava mais que na hora de descobri-la. Decidiu mudar de rumos na virada do século. Vendeu tudo e viajou pela Europa. Por toda a parte, as cidades cresciam rapidamente, havia muito o que ver e fazer — e Will tinha todo o tempo para isso.
A máscara impôs uma série de obstáculos na jornada. Podiam tomá-lo por leproso e mandá-lo para Harbledown ou qualquer dessas colônias de doentes que surgiam na Inglaterra. Para resolver isso, tomou a ideia de uma trupe de pantomimos que vira no caminho. Os atores, mascarados ou maquiados, eram recebidos com expectativa por onde passavam justamente pelo aspecto fantasioso. Decidiu então ser malabarista. É verdade que Will levou bons trinta anos para aprender uns truques decentes. Suas mãos calejadas demoraram a desacostumar do pulsar bruto do martelo. Mas, ao fim, tinha passe livre nas cortes europeias, entretendo nobres por comida e leito.
Essa festa durou pouco. Na segunda metade do século 13, os tribunais da Inquisição atiçaram as chamas da intolerância na Toscana, na Romanha e noutras regiões europeias que Will gostava de visitar. Em Toulouse, correu o relato de um bobo da corte que não tirava sua máscara branca nem para dormir. Quando os santos homens vieram queimá-lo vivo por tal heresia, encontraram apenas um camponês amarrado e amordaçado, trajando uma ceroula recortada sobre a face, enquanto Will fugia na direção oposta, rumo à Inglaterra, onde os grandes inquisidores não pisavam. A perseguição da Igreja e o passar do tempo tornaram-no, assim, cada vez mais secular.
Os anos que se sucederam foram ainda mais brutais. Enquanto as cidades cresciam, os frutos do trabalho no campo continuavam indo para os salões da nobreza. Com pouco estímulo à produção, a conta não mais fechava: havia mais bocas para alimentar que comida disponível. Para piorar, um longo período de chuvas destruiu lavouras em toda parte, matando milhões na Grande Fome.
Apenas os piores sobreviveram à onda de miséria, desespero e violência que se seguiu nos anos 1300. Não foram raros os casos de canibalismo nessa época. Will, para sobreviver, precisou descer ao lodo que o cercava, pois, embora não morresse de fome, ainda sentia o vazio nas estranhas como qualquer mortal. Acostumou-se a derramar sangue com quem tira leite de ovelha. Sua alma estava para sempre perdida, não por causa da máscara em si, e sim pelo instinto de manter-se vivo.
Logo, um flagelo maior encontrou terreno fértil na Europa para semear nova desgraça. O povo faminto foi presa fácil da Grande Pestilência que se alastrou rapidamente na metade do século 14. Populações foram reduzidas à metade em questão de anos e, em alguns casos, não havia sequer quem enterrasse os últimos mortos da cidade.
Mas Will viu nisso uma oportunidade. Agora batizado no mundo, não receou aproveitar-se da situação. Arranjou um longo casaco preto, um chapéu também preto, luvas de couro e, o mais importante, uma máscara com um enorme bico de pássaro. Assim, trajado de médico da peste, pôde circular livremente pela Europa mais uma vez.
Os séculos seguintes foram uma sucessão de revoltas, guerras, pogroms, epidemias, impérios, seitas e outros males. Will atravessou tudo isso ileso, como lhe fora prometido, não sabendo bem se pela máscara ou pela própria astúcia. Forjava uma nova identidade a cada geração e roubava sem o menor peso na consciência. O crime não lhe era nada diferente dos dias na oficina ou de criar galinhas, aquilo apenas garantia uma subsistência um pouco mais confortável. Aprendeu, inclusive, a guardar os espólios de um século para vendê-los no outro, quando valeriam mais.
Fez fortuna dessa maneira, adquiriu terras e comprou títulos ora neste país, ora naquele. Foi lorde, barão, conde e duque. Não importava que pensassem esconder as marcas da sífilis por trás da máscara, enquanto tivesse dinheiro, o mundo lhe permitia tudo. Podia comprar até o amor de uma mulher por alguns minutos, mas tinha de pagar mais caro por parecer doente.
Quando as nações tomaram gosto por guilhotinar nobrezas, Will mais uma vez reinventou-se. Virou banqueiro. Abriu cassinos. Intrigava a alta sociedade mais pelo seu conhecimento do passado que pela sua figura. Falava das expedições de Colombo e do declínio dos Habsburgos com propriedade. Em Paris, foi inspiração para um personagem de Gaston Leroux no início do século 20. Um pouco depois, em Veneza, viu sua máscara reproduzida em milhares de faces no Carnaval. Mesmo assim, a velha pergunta permanecia sem resposta:
— Pelo que vive, então?
III
Will passou com enfado pela Guerra Fria, pela chegada à lua, pela internet e pela Covid-19. Para ele, que viveu tanto quanto Noé ou Matusalém, tudo se tornou uma eterna repetição. Nessa longa existência, um único fio teceu seus quase mil anos de vida: a falta de sentido. É possível que, se vivesse ainda outro milênio, jamais o encontraria. Não havia por descobrir, como Copérnico, que a Terra girava em torno do sol. A verdade é que não havia sol nem luz alguma. Sua vida orbitava um grande vazio.
Foi essa conclusão que levou o mascarado de volta à terra natal, no ano de 2023, para abdicar da eternidade que não mais lhe apetecia.
Havia séculos que não regressava aonde tudo começou. Ele e o vilarejo, agora uma grande cidade, estavam irreconhecíveis um ao outro. Will tentou lembrar onde ficava a antiga casa e não pôde. O horizonte foi desfigurado, enquanto as cicatrizes na forma de prédios ostentavam sua feiúra sem máscara.
O fato é que Will recordava-se pouco do quanto fizera parte de sua primeira vida. Não lembrava nem o aspecto nem os nomes de sua esposa e de seus filhos. Talvez sequer reconhecesse o próprio rosto. Intimamente, tinha até medo de vê-lo e do que esse ato significaria.
Ao contrário do velho que lhe ofereceu a máscara, Will não estava pronto para aceitar sua escolha. Se não queria mais ser imortal, também não queria morrer, mesmo depois de provar por mil anos de todos os frutos da existência.
Seus pés e sua mente davam voltas pela cidade. Vagou até o pôr do sol, quando o destino colocou-o no mesmo local onde tomou a decisão mais importante de sua vida. A ponte de pedra dera lugar ao metal, mas o rio abaixo seguia o curso natural do tempo. Aqui e ali, vestígios dos arcos romanos ainda podiam ser vistos na água.
Não havia meio-termo. Ou se vive, ou se morre. E a escolha pela vida levou-o a toda parte, sem destino algum. Pelo que viveria ainda? Não. Não mais. Nem queria o flagelo da dúvida com o qual se torturaria noite e dia. Nunca conheceria a exata hora do fim, a não ser…
Will permitiu-se um sorriso enquanto subia no parapeito, como se não soubesse o que estava prestes a acontecer. Tirou máscara e, entre risos e lágrimas, sentiu o vento em seu rosto pela primeira vez em 963 anos. Então, incapaz de encarar seu medo no reflexo da água, ele se jogou no rio de olhos fechados, batendo-se contra as pedras e afogando-se com a máscara abraçada ao peito.
Gostou desta pequena aventura de mil anos? Porque eu adorei escrever e, mais ainda, pesquisar os pequenos detalhes históricos, como o jogo de Hazard, as colônias para leprosos na Inglaterra, a exemplo de Harbledown, e as pinturas associadas à peste bubônica, quando na verdade representam lepra e varíola.
playlícia
Aqui está uma lista de discos instrumentais que gosto de ouvir quando quero escrever. São uma extensão da playlist Foco aí nessa caceta!, que continua em evolução.
Faten Kansan — Afterpoem
Brambles — Charcoal
John Field — Piano Music, Vol. 1
Nonato Luiz — Gosto de Brasil
Peter Gregson — Quartets: One - Four
Floating Points — Promises
Jeremiah Fraites — Piano Piano
Ottorino Respighi — Church Windows, Brazilian Impressions
Julia Kent — Asperities
Fiona Brice — Postcards From
vi por aí
Estou muito chique! Dei uma extensa entrevista ao La Tela, um novo portal dedicado a cobrir a cultura e as artes em Santa Catarina. Quem for do estado, acompanhe!
A também substacker
foi a entrevistada da vez no Posfácio Podcast.Nadja Rodrigues de Oliveira, uma poeta que conheci na oficina literária de Isadora Krieger, está lançando o livro Povoemas e outras nascentes pela 7Letras.
Saíram dois poemas de Eduarda Vidal no blog da Macabéa Edições. A mulher é boa, viu!
O Rio Grande do Sul ainda precisa da nossa ajuda. Recomendo conhecer o trabalho da Cozinha Solidária do MTST, que faz um trabalho louvável.
Chegou aqui nem sabe como? Fique para um café com bolo na próxima edição da Newslenta.
Um abraço do Chris
uau!
Muito bom!! Lembrei de Raul "e não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais".
Um beijo.